DOHA ? Quando se enfrenta um adversário mais poderoso, o futebol muitas vezes é um jogo de concessões. O quanto você está disposto a abrir mão de seu DNA para se adaptar? O quanto se recusará a ceder? Tal opção diz muito sobre o caráter de um time e de um treinador. O Flamengo fez pouquíssimas concessões diante de um Liverpool que vem varrendo Inglaterra e Europa como rolo compressor. À sua forma, esteve à altura da ocasião. Se houve um grande jogo em Doha, o Flamengo contribuiu.
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Mas o futebol tem suas crueldades, não tem receita pronta. Uma das concessões que o Flamengo não quis fazer resultou nas principais chances do Liverpool ? o gol, em certa medida, entre elas. Uma concessão que o rubro-negro se viu obrigado a fazer o tornou menos agressivo do que o habitual e cortou um pouco de suas asas no ataque. O futebol é quase sempre um cobertor curto.
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Então, qual era o plano? Sem a bola, o Flamengo tentava obrigar o Liverpool a sair jogando com Joe Gomez, em tese o menos hábil da defesa. A partir daí, cortava-lhe opções de passe, sem se afundar em sua área. A defesa rubro-negra jogava no limite, o mais distante possível do gol, mantendo o time compacto. A escalação de Bruno Henrique na ponta esquerda tentava limitar o lateral Arnold. Sob o aspecto de impedir os ingleses de armarem ataques através de construções pacientes, funcionou.
Com a bola, o Flamengo recuava Arão entre seus zagueiros para a saída de bola. Sabia que Firmino, Mané e Salah marcariam Caio, Arão e Mari. E que os laterais Arnold e Robertson subiriam para acompanhar a pressão. Então Éverton Ribeiro ficava entre a ponta e a meia direita; Arrascaeta, escalado de início como um meia central, buscava aproximar-se da bola; Bruno Henrique era referência na ponta ou em diagonal na direção da área. Tudo isso porque, naturalmente, seria às costas dos laterais, numa zona intermediária entre a linha lateral e o centro do campo, onde estaria o espaço. Após 15 minutos difíceis, o Flamengo passa a fazer o circuito funcionar: saída com um excelente Arão e um ótimo Gérson, troca curta de passes vencendo a marcação rival e, na frente, um jogo com mais espaço e jogadores se aproximando em torno da bola para dialogar. Por boa parte da primeira etapa, controlou.
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Mas e as concessões? Vamos à que Jorge Jesus precisou fazer. O Flamengo sabia que precisava tirar ritmo do jogo, minimizar perdas de bola que dessem a transição ao Liverpool. Para isso, cuidava da bola como seu maior bem. Mas tinha que se precaver muito, manter sua defesa o mais montada possível enquanto atacava. Havia um preço. Naturalmente, nos momentos em que controlou o jogo trocando passes, chegou com menos gente ao ataque do que o habitual. A verdade é que foram raras as sensações de gol que o Flamengo conseguiu criar, com todo o bom papel que fez.
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E a concessão que Jesus não fez? Se queria atacar, não era possível manter a linha de zaga colada ao seu gol, espaçando o time. E foi em lançamentos às costas da defesa que o Liverpool mais criou durante 60 minutos. E note-se, este tipo de jogo é ousado demais contra a equipe de Klopp. Exige muito da linha de defesa, e todos fizeram grande partida. Rodrigo Caio, aliás, fez um jogo monumental.
Mas aqui é preciso tocar em outros pontos. Não foi o Liverpool tão obsessivo na pressão que se vê nos grandes jogos. A razão, dificilmente se saberá. Talvez os primeiros acertos do Flamengo tenham feito Klopp mudar a abordagem. Não parece tão provável, pelo DNA do time. O fato é que, tanto em intensidade quanto na parte técnica, o Liverpool foi menos do que é. O que não tira um pingo de mérito do Flamengo de expor tal situação. Mas nas passagens de jogo em que impôs um ritmo mais forte, o time inglês sobressaiu, porque é mais forte. É a ordem econômica do futebol.
Com tudo de bom que o Flamengo fez, com o domínio de parte do primeiro tempo, ainda assim não foi o bastante para ser o melhor time nos 120 minutos. O Liverpool criou mais, especialmente atraindo o Flamengo para contragolpear em bolas longas. O esforço rubro-negro para ser competitivo foi tamanho que, após 70 minutos, o físico pesou muito. E aí o Liverpool conseguiu criar, embora sem ser jamais avassalador, também quando tinha a posse no campo rubro-negro. Era um preço a pagar. Numa tentativa ofensiva do Flamengo já na prorrogação, Henderson achou o passe fatal para Mané dar a Firmino a bola do jogo. O meia do Liverpool, aliás, talvez tenha sido o melhor do jogo. E, a partir de dado momento, gozado de muita liberdade.
Jesus será julgado pelas substituições, isto sim é cruel. Éverton e Arrascaeta já não tinham forças e ele colocou Vitinho e Diego, este inicialmente pelo lado direito do ataque, para não abrir mão da dupla Willian Arão e Gérson, ponto de equilíbrio do time. E Diego poderia tentar repetir o movimento da ponta para o meio que Éverton fazia. Até Gérson cansar, virar ele próprio um meia pela direita e depois sair. Vitinho demorou muito a entrar no jogo. Quando o fez, revelou que a ideia de Jeus, de manter um homem veloz, fazia sentido. A esta altura, o Flamengo já apostava mesmo no contra-ataque. E Vitinho criou a bola do jogo, no lance de Lincoln que muito rubro-negro recordará por longo tempo.
O jogo indica que o abismo entre Europa e Américas diminuiu? Não, primeiro porque o Flamengo é exceção na América. O jogo mostra que o Flamengo, com sua recuperação como clube, reduziu diferenças. Mas, ainda assim, compete com um grupo de ótimos jogadores brasileiros contra uma seleção internacional. Tanto que os jogadores indiscutivelmente de seleção brasileira que estavam em campo defendiam a equipe inglesa. Um deles fez o gol. A realidade do jogo ainda é cruel: o sul-americano num brutal esforço tentando nivelar o que segue desnivelado. Só que com ideias, ordem, com aposta num jogo de aproximações em torno da bola – e investimento alto, é claro ?, o Flamengo mostrou que o futebol brasileiro é capaz de competir. E a final, decidida por um brasileiro, também.
Fonte: O Globo