Arthur Antunes Coimbra, o homem em torno de quem os rubro-negros comemoram o Natal em 3 de março, está curioso. Zico ainda não sabe se o jogo Flamengo x Liverpool, que acontece às 14h30 de Brasília, será transmitido no seu voo de Kashima ao Rio.

? A Emirates costuma passar umas coisas ao vivo, tomara que seja o jogo. Como tem internet, talvez consiga uns sites para ver.

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Melhor jogador tanto da história rubro-negra e quanto do clímax desta, em Tóquio-1981, o ídolo rubro-negro será recebido numa casa com direito a muita expectativa pelo oitavo neto. Tom é esperado para abril por Thiago, o único filho a ter jogado no clube depois do pai. De Kashima, onde é diretor técnico dos Antlers, ele conversou com o GLOBO sobre o que espera desse replay, sobre o futuro do Flamengo e sobre as imagens e impressões que ficam após cada conquista.

 

Você vai vir sozinho nesse voo?

Sim. Minha mulher foi hoje [quinta, 19]. O time joga sábado à tarde [contra o V-Varen Nagasaki, às 4h da manhã de Brasília, pela Copa do Imperador]. Assim que a partida acabar, eu vou para o aeroporto.

 

Soube que sua família fará um churrasco para ver o jogo na sua casa. Como vai ser esse ambiente?

O mais importante é que todos são flamenguistas. Ou fazem a festa no Maracanã, ou fazem na minha casa. É muito legal essa transição, de pai pra filho.

 

Nem seus filhos, nem seus netos te viram ganhar o Mundial, e mesmo assim eles curtem esse Flamengo que você proporcionou.

Lógico que a gente fica feliz de ter dado pontapé nisso tudo. E hoje ser reconhecido por todos e, principalmente, pela minha família. Porque eles começam a entender melhor o que é que aconteceu com o pai, com o avô. O mundo é diferente, o que envolve esse jogo, em relação a tudo é diferente. A questão do que representa o Flamengo hoje é diferente. Na nossa época não tinha toda essa cobertura de mídia, internet, o número de torcedores não era esse. Importante é que eles vão entender e saber que se o Flamengo é o que é, que foi graças àquela geração, que colocou o nome do Flamengo em “outro patamar”, como diz o Bruno Henrique.

Rubro-Negros ostentam bandeirão do ídolo no embarque do time para Doha Foto: PILAR OLIVARES / REUTERS
Rubro-Negros ostentam bandeirão do ídolo no embarque do time para Doha Foto: PILAR OLIVARES / REUTERS

 

 

Acha que os jogadores atuais do Flamengo têm um sentimento muito diferente do que a sua geração teve na final?

Quando eu ia jogar em São Paulo, não tinha um gato pingado. A torcida tinha que ir de ônibus do Rio. Hoje a torcida do Flamengo lota o Pacaembu. Aquele time que ganhou tudo entre 1978 e 1983 foi fundamental para tudo isso que o Flamengo é hoje. Aquele grupo conquistou mais títulos do que o clube havia conquistado em toda história, e títulos importantes. Às vezes, falavam que Carioca era mais importante que Brasileiro. Só depois que ganhavam é que se dava valor a isso. Na nossa época, os regionais eram muito mais badalados.

Para essa geração, vai ser totalmente diferente. Eles vão estar abraçados com a torcida. No Japão tinha dois torcedores do Flamengo. O resto era delegação e familiares. Eu tive a felicidade de ter a Sandra do meu lado, ela sempre esteve em todas. Aqui, no Uruguai, na Libertadores. Todas as decisões. É legal, ela vivenciou. Em termos de torcida, é um momento fantástico para ser vivido. Mais de 10 mil torcedores lá, e no mundo inteiro ligados para passar energia.

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E o Mundial não tinha o peso de hoje.

Mundial só tinha acontecido praticamente um naquele feitio, no ano anterior, entre Nacional (Uruguai) e West Ham (Inglaterra). E passou a acontecer em Tóquio porque os europeus não queriam vir mais para a América do Sul. O Ajax não veio, O Liverpool não veio. Tentou-se um acordo para ser num país neutro. O Japão, que estava com dinheiro na época, encampou a ideia. Eles tinham um objetivo de profissionalizar o futebol deles, tinha um projeto, e hoje é o que é. Por tudo isso, essa conquista ainda me marca.

 

Como é ver o Flamengo voltar a essa decisão, 38 anos depois?

Eu fico feliz pela torcida, que vem trás disso ha muito tempo. Ela é o maior patrimônio que o Flamengo tem. Uma das coisas que ninguém pode negar é que, em todos os momentos, ela esteve do lado do time, com elogios, críticas, agora ela está vivendo momento ímpar, que há muito tempo não vivia. É a empatia, é a confiança, porque o time está jogando de acordo com o que ela gosta, isso é mais importante. Hoje está feliz porque o time está jogando de uma forma que é o que o Flamengo é. De qualidade técnica, garra, luta, entrega. Não desiste até o final. Isso sempre marcou a história do Flamengo. Não desistir.

Zico, Andrade, Leandro e Júnior seguram as taças do Mundial de 81 Foto: Sebastião Marinho / Agência O Globo
Zico, Andrade, Leandro e Júnior seguram as taças do Mundial de 81 Foto: Sebastião Marinho / Agência O Globo

 

 

Dá para analisar as dificuldades de 1981 e comparar com as de agora?

Não gosto de fazer comparações, ainda mais com toda essa distância. Na época, o Liverpool era uma seleção do Reino Unido, tanto que os dois melhores eram escoceses, (Kenny) Dalglish e (Graeme) Souness. Mas o resto era de seleção inglesa, que eu já tinha enfrentado algumas vezes. Talvez não conhecessem tanto o Flamengo na época. Hoje o Flamengo também é uma seleção, mas o Liverpool é uma seleção mundial, são titulares da suas seleções. Tem da Holanda, do Brasil, Egito, Senegal, Croácia, Inglaterra. E com um treinador [Jürgen Klopp] que vem evoluindo a cada ano, que trouxe um time pequeno da Alemanha [Mainz FC] para a primeira divisão, pegou o Borussia Dortmund e botou no mesmo degrau, fez do Liverpool uma outra história…

Eu acompanhei há dois anos mais ou menos o Liverpool na Champions, quando eu era comentarista. O trabalho que ele fez foi fantástico. O Flamengo tem que ter preocupação com o trio de atacantes (Salah, Mané e Firmino). Depois de Neymar-Suarez-Messi no Barcelona, e Cristiano-Bale-Benzema no Real, agora são eles. Eles se encaixaram no ataque do Liverpool. Se conseguir anular esse trio é um passo para vitória. Mas o Flamengo tem um quarteto (Éverton Ribeiro, Gabigol, Bruno Henrique e Arrascaeta). 

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Jorge Jesus é muito diferente dos outros técnicos brasileiros?

Ele conseguiu fazer com que os jogadores entendessem o que é jogar no Flamengo. A maioria dos jogadores já estavam lá, talvez meio acomodados, não sentindo o que teriam que fazer a mais para entrar na história do Flamengo. Jesus teve essa visão. E o estilo de jogo foi beneficiado porque ele tem seis ou sete jogadores que estão acostumados a essa intensidade europeia. Rafinha, Marí, Diego Alves, Filipe Luis, Gerson, Gabigol, Bruno Henrique. São jogadores acostumados com esse tipo de futebol. Jesus juntou essa filosofia e o entendimento do que é o clube, e a torcida encampou isso. Ele foi fundamental.

 

O legado da geração de 1981 terá o mesmo sentido, caso o Flamengo chegue ao bicampeonato?

A gente acaba prejudicando muito as gerações que vieram depois, indiretamente. Gera uma obrigação muito grande em cima das novas gerações. Como nós conquistamos, todo mundo é obrigado a conquistar. Não é por aí.

As conquistas acontecem quando se junta uma série de fatores. Jogadores, técnico, profissionalismo, e tudo dá certo. Eu devo ter atrapalhado a carreira de muita gente que jogava na minha posição. Você não dá espaço. Se o cara é bom, e eu estou subindo, vou jogar em outro lugar. Eu quando comecei, fui para direita, fui centroavante, e quando deu brecha, não saí mais. A vida é assim. As coisas não podem durar para sempre. Não pode ficar preocupado com uma geração que veio e ganhou. Quero ver o torcedor feliz. Não estou preocupado se vão lembrar de mim.

O Galinho durante o primeiro duelo contra os ingleses do Liverpool Foto: Sebastião Marinho / Agência O Globo
O Galinho durante o primeiro duelo contra os ingleses do Liverpool Foto: Sebastião Marinho / Agência O Globo

 

 

Acredita que essa geração atual pode repetir o domínio que vocês tiveram entre 1978 e 1983?

Vejo essa possibilidade pela estrutura que o Flamengo tem hoje. É muito mais fácil por tudo que têm. Tem marketing, tem arrecadação, todos vão querer investir. Quando a gente foi campeão do mundo, o time treinava em campo de terra. O grama da Gávea estava com uma praga, a gente passou seis meses treinando como se fosse no Aterro do Flamengo. Teve época que não tinha bola para treinar. Em 2010, quando eu estive lá (diretor de futebol), os profissionais da base trocavam de roupa embaixo da caixa d’ água. Hoje é muito melhor.

E se o bicampeonato não vier?

Se vier, maravilha. Se não vier, nada vai mudar. Não vai impactar. Final é final. Não está enfrentando um time qualquer.

 

Quem você acha que pode ser o herói dessa vez?

Muitas vezes os grandes nomes são muito bem marcados. Aí, sobra espaço para um que menos se espera. Eu, sinceramente, gostaria que fosse o [Willian] Arão um cara decisivo. Por uma série de coisas que aconteceram na história dele. Mas, nesse jogo, ele terá mais trabalho na defesa. Mas ele se infiltra muito bem. Pode ser surpresa.

Em visita ao Ninho, Zico encontrou o 'Mister' Jorge Jesus Foto: Alexandre Vidal / Flamengo
Em visita ao Ninho, Zico encontrou o 'Mister' Jorge Jesus Foto: Alexandre Vidal / Flamengo

Quem é seu jogador favorito nesse time?

Foi uma coisa tão coletiva, tão técnica, difícil escolher um. A forma como joga o Flamengo, ofensiva, que até privilegiou o Diego Alves. Porque o time oferece espaço, obriga ele a trabalhar e mostrar seu valor. A gente falava pro Raul, a gente vai para o ataque, vê se defende alguma coisa aí, risos.

 

Não vai escolher um meia?

Tudo tem um inicio. A bola chega limpa através do Everton e Arrascaeta. E Diego também. Quem joga lá na frente depende do cara que arma.

 

Acha que o Flamengo impõe um novo paradigma ao futebol brasileiro?

Foi um ano importante pela chegada do Jesus, do Sampaoli também no Santos, da continuidade do Renato no Grêmio.  Eles adotaram uma nova filosofia de jogo, e é isso que o brasileiro quer ver.

 

Isso pressiona o time na seleção?

Pressiona o Tite. Porque tudo aquilo que é vencedor gera uma pressão. O Tite chegou vencedor de sua etapa no Corinthians, agora tem que ser vencedor de uma forma que o público seja trazido de volta. Para ter empatia com a seleção, como o torcedor do Flamengo tem hoje. Os últimos jogos da seleção foi um clima burocrático, não vejo alegria, paixão, prazer, e seleção é isso.

O artilheiro Gabigol também confraternizou com o Galinho Foto: Alexandre Vidal / Flamengo
O artilheiro Gabigol também confraternizou com o Galinho Foto: Alexandre Vidal / Flamengo

 

 

Quantos desse Flamengo merecem lugar na seleção?

Muitos. Acho que o Flamengo tem muitos para estar na seleção. Mas tem que usar da forma como estão jogando no clube. Não pode pôr de outra forma. Sou sempre de acordo com isso. Jogador vai para seleção porque rende no clube. Se mudar de função, não dá. Chamaria o Gerson. Apesar de que nos últimos jogos parece ter tido algum problema físico. Não está com aquela intensidade que estava no inicio. Mas ninguem gosta de ficar fora do filé mignon.

 

O que diria ao Gabigol para ele ficar?

Que ele teria que sair para uma situação ultramelhor do que tudo que ele conquistou, em termos de profissionalismo, de vida, de idolatria que ele tem hoje. Em qualquer outro lugar, ele com certeza vai ter que começar tudo de novo. Ainda mais na Europa, onde, infelizmente, talvez pela juventude, esperavam demais dele, e ele não conseguiu. Isso pode ser algo que o motive a ir para lá. Demonstrar que não fracassou, que apenas não foi como gostaria. Ele ainda é jovem, tem tempo. Mas não vejo porque, tendo possibilidade de permanência, ele mudar no momento.