O futebol de clubes atual criou tamanha disparidade entre Europa e o restante do mundo que, sob o olhar sul-americano, o Mundial da Fifa é dividido em duas etapas. A primeira, a semifinal mais desconfortável do ano, uma ocasião que deveria ser um prêmio pelo que se produziu na temporada, mas termina como um fardo. Logo depois vem o desafio tido como inatingível, quase intransponível, a ponto de ser vivido com menos pressões do que o jogo anterior.

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O fato é que hoje, às 14h30m (de Brasília), o Flamengo enfrenta o Al-Hilal numa ocasião que tem reservado aos sul-americanos mais castigos em caso de derrota do que reconhecimento em caso de sucesso.

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Porque o mundo percebe, graças à concentração de astros, o quanto a Europa se distanciou da periferia do jogo. É menos perceptível, no entanto, que as diferenças entre América do Sul e centros menos tradicionais, como Ásia e África, não se ampliaram. Ao contrário.

Só que a exigência segue baseada em velhas tradições. Assim, a semifinal do Mundial de Clubes virou, para os sul-americanos, a última ocasião em que sua temporada pode sofrer alguma reprovação, marcada a ferro por algum constrangimento. É o último dia do ano em que toda a pressão está nos ombros. Depois, diante do campeão europeu, é glória eterna ou resignação. Basta evitar uma goleada embaraçosa. Este tem sido o roteiro, até hoje.

Não foi à toa que Jorge Jesus falou tanto do Al-Hilal. Basta recorrer às memórias das participações sul-americanas em Mundiais. Lembrar-se dos brasileiros que romperam prognósticos e foram campeões, casos de Internacional, São Paulo e Corinthians, ou dos que se viram surpreendidos por Mazembe, (Congo), Raja (Marrocos), Kashima (Japão) ou Al Ain, dos Emirados Árabes. Todas essas derrotas marcaram Internacional, Atlético-MG, Nacional-COL e River Plate.

Desde que obteve a vaga, Jesus quis colocar as coisas em contexto, alertar que há um jogo com dois possíveis vencedores. Ainda que seja inevitável um desapontamento, no caso de o futuro negar à torcida do Flamengo o reencontro com o Liverpool.

Ricos da periferia

Afinal, tanta pressão de um suposto favoritismo teve seu papel em produzir atuações abaixo do esperado de sul-americanos em praticamente todas as semifinais de Mundiais.

? No Brasil falou-se muito do Liverpool e se esqueceu de que há jogo antes. Uma equipe saudita, em geral, não é conhecida no panorama mundial e tende a ser desvalorizada. Aliás, desvalorizam todos os continentes que não são Europa ? disse Jesus, que sempre lembra que treinou o Al-Hilal. ? Sei o valor deste time.

Esportivamente falando, o segundo semestre do Flamengo em 2019, é até aqui uma grande celebração. Uma derrota para o Liverpool não apagaria tal sentimento, desde que não fosse uma catástrofe. O correto é que a temporada seja lembrada como um enorme sucesso, mas não seria fácil lidar com um tropeço diante dos sauditas.

O discurso de Jorge Jesus que ganhou a companhia do lateral-direito Rafinha.

? Estamos vacinados. Ainda que o torcedor ou a imprensa simule uma final com Liverpool, jogo que todo mundo no Brasil quer ver, somos realistas: o adversário é o Al-Hilal. Temos exemplo de brasileiros tidos como favoritos que ficaram pelo caminho ? disse o lateral.

No Estádio Khalifa, o Flamengo financeiramente fortalecido por investimento inédito na América do Sul, que formou um elenco treinado por uma comissão técnica europeia, tentará provar que é possível diminuir o abismo para a Europa e marcar diferenças contra um time do Oriente Médio. Os efeitos desta nova realidade rubro-negra serão testados em campo.

Num confronto entre ricos da periferia, o Flamengo ostenta sua saúde conquistada com reestruturação administrativa e ampliação de receitas. O Al-Hilal é propriedade do governo, tendo como patrono o bilionário príncipe saudita Alwaleed Bin Talal. Nas duas últimas temporadas, o clube gastou R$ 160 milhões em jogadores como o francês Gomis, o italiano Giovinco, o peruano Carrillo e o colombiano Cuéllar. Já o Flamengo comprometeu mais de R$ 200 milhões para montar o time atual. A partir de hoje, o clube saberá onde o seu novo patamar será capaz de levá-lo.