Descontado todo o desgoverno de um Palmeiras frustrado, com cara de time em contagem regressiva para se livrar de uma temporada transformada em calvário, o duelo de ontem materializou 19 pontos em 90 minutos. Ou seja, a diferença entre os times na tabela traduzida pela naturalidade com o que o rubro-negro construiu o placar.
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Na parte final, o resultado largo e pequenos problemas físicos lembraram ao Flamengo que há um compromisso maior logo adiante, no Qatar. Enquanto isso, o Palmeiras melhorou: foram duas bolas na trave, um gol dos paulistas, uma defesa de Diego Alves e dois contragolpes perigosos do Flamengo. A esta altura, a sensação foi de que as alternâncias de humor nos privaram de um jogaço em potencial.
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Este Flamengo que parece tão descolado do contexto em que compete, tão acima dos concorrentes, vive apenas uma questão típica das periferias do jogo, dos países convertidos em exportadores de talento. A cada gol de Gabigol, vem à mente a incerteza sobre o seu destino. A construção e perda do ídolo são duas faces de um drama sul-americano. Por mais que um clube se organize, evolua financeiramente, planeje adquirir ares de superclube das Américas e passe a oferecer salários europeus, há um aspecto humano incontrolável na relação com determinada classe de jogador: o tipo de ambição de cada um.
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O jogador atual cresce assimilando o conceito de que o centro do futebol é a Europa, de que a grande competição do planeta é a Liga dos Campeões. O que é verdade. De fato é lá que está a excelência do futebol de clubes. E por mais rico que seja, nenhum clube sul-americano tem uma Liga dos Campeões para oferecer.
O centralismo europeu do jogo, fruto da concentração de riquezas que relegou a um papel secundário marcas esportivas historicamente fortes, criou a percepção de que uma carreira só é chancelada quando se é bem sucedido no ambiente Liga dos Campeões. E Gabigol não é sequer membro da primeira geração de jogadores que cresceu absorvendo isso. É natural que atletas que desejam se provar na elite do futebol se vejam tentados diante da chance de competir com ou contra Messi, Cristiano Ronaldo e outros astros. É algo que se fantasia desde jovem, do vídeo-game ao mundo real da competição.
E note-se, nem sempre é justo rotular como fracassadas carreiras que não se consolidaram no topo da pirâmide europeia. Afinal, trata-se de jovens colocados longe de suas referências: casa, família, clima, vestiário e treinadores com visões diversas de futebol. O próprio Gabigol é um exemplo. Não se sustenta a tese de que não tenha capacidade técnica para jogar no alto nível europeu. E a passagem pelo Flamengo, em especial graças a Jorge Jesus, fez surgir uma reinterpretação de seu jogo, num modelo em que a liberdade de movimento o fez atingir nível elevadíssimo. Um nível que dá a ele a chance de decidir sobre o futuro.
Na Europa, pode ter nova chance de se provar na elite do jogo. No Flamengo, terá também um ótimo salário, a idolatria e a chance de ser um jogador histórico de um clube enorme. Tudo depende da natureza de sua ambição. Nenhuma escolha será errada.
Enquanto isso, a periferia do jogo segue com seu drama. Ontem, antes do Palmeiras x Flamengo, Gabigol era cercado por crianças no túnel de acesso ao campo. Crianças palmeirenses, diga-se. Sejam os gols, o cabelo, a comemoração, enfim, o fato é que se trata de um personagem, de uma construção de ídolo que se tornou tão rara no futebol sul-americano. E mal vimos o ídolo nascer, começamos a nos preocupar com sua saída. A perda das referências é um prejuízo imenso.
Fonte: O Globo