A forma voraz com que o Flamengo ganha jogos, acumula pontos e se aproxima de conquistas termina por conduzir a situações pouco usuais. Entre elas, a possibilidade real de conquistar a América e o Brasil num espaço de 24 horas, no próximo fim de semana. Um feito tão histórico quanto inusitado. Mas que, no fundo, expõe questões mal resolvidas do futebol sul-americano.
É verdade que não é simples fechar o calendário futebolístico com a decisão do principal torneio do continente. Há países que realizam competições de agosto a maio, como na Europa, e outros que jogam de janeiro a dezembro. E ainda há o Mundial de Clubes. Mas é indesculpável não isolar a final da Libertadores, não paralisar as disputas nacionais no fim de semana do principal jogo do América. É incoerente com o espírito de se realizar uma final em jogo único, uma ocasião nobre, comercialmente vendável. O continente deveria parar, se concentrar nesta final.
Brasil e Argentina, os países envolvidos na decisão, terão rodadas inteiras em disputa. Dois jogos da Superliga Argentina vão começar 40 minutos após o horário previsto para o fim do tempo regulamentar de Flamengo x River Plate. Se o jogo for para a prorrogação, haverá times em campo na Argentina durante a fase agônica do jogo de Lima. O Campeonato Brasileiro terá um decisivo Santos x Cruzeiro na noite de sábado.
O Flamengo pode ser vítima até de uma injustiça histórica, seja qual for o desfecho do duelo no Peru, caso ganhe o Brasileiro um dia depois, sem entrar em campo. Sua campanha no Brasileirão é tão acima da curva, tão notável, que não merece se transformar numa espécie de prêmio de consolação caso venha após uma hipotética derrota para o River Plate. Tampouco merece ser uma comemoração que “pegue carona? em uma festa maior, caso o time seja bicampeão continental. A história dará a esta equipe de Jorge Jesus a devida importância e, com o tempo, colocará o título brasileiro no devido patamar. É um time de qualidade de jogo e estilos marcantes. Por tudo isso, a campanha que quebrará recordes de pontos merece uma celebração só dela, algo que a confusão dos calendários de CBF e Conmebol não conseguem assegurar.
Desde ontem, apenas uma formalidade nos separa de tratar o Flamengo oficialmente como campeão brasileiro. Mas é curioso como um jogo de circunstâncias tão atípicas, com apenas três titulares iniciando o confronto com o Grêmio, terminou por nos lembrar algo fundamental sobre a melhor equipe do país.
O Flamengo iniciou a partida em Porto Alegre tentando ser tudo o que é habitualmente, quando dispõe de sua formação principal: intenso, compacto, pressionando na frente. Aos poucos, foi tendo menos controle da bola e passou a defender muito atrás. E então o time que já fez 73 gols no Brasileiro, que se tornou badalado pela volúpia ofensiva, nos alertou para outra característica: a capacidade de defender bem.
A questão é que, quase sempre, associamos boa defesa à capacidade de proteger a área. Algo que o Flamengo fez em Porto Alegre para suportar o volume e a pressão gremista. Só que este time já defende bem há algum tempo sob o comando de Jorge Jesus. Ocorre que o faz no campo ofensivo, criando gols a partir de desarmes a meio caminho da área rival. Ontem, jogou o Flamengo possível às vésperas da partida mais importante das últimas três décadas do clube.
Não foi o melhor Flamengo que já se viu, longe disso. Mas ainda assim, o arsenal de qualidade técnica que o clube reuniu para a temporada salvou a tarde. Um dia é Gabigol, outro é Éverton Ribeiro, ontem foi Arrascaeta. O lance que resultou no pênalti decisivo teve a assinatura do uruguaio. O Flamengo tem muitas armas.
Fonte: O Globo