Nos dias que antecederam a abertura do confronto, Renato Gaúcho tentou sustentar no discurso o status do “melhor futebol do Brasil”. Acontece que há momentos em que o campo fala de forma inequívoca. Em Porto Alegre surgiram os primeiros sinais. Até que veio o Maracanã para colocar as coisas nos devidos lugares. Inapelável.
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Enfim, Flamengo e River Plate fazem o jogo que faltou à Libertadores de 1981
Nem é o caso de dizer que o 5 a 0, talvez escandaloso demais, seja o tamanho exato da diferença. O fato é que não é preciso mais nada para provar quem joga melhor não só no Brasil, mas no continente. Aquela sensação de impotência que tantas vezes sentimos ao ver clubes brasileiros diminuídos em choques com gigantes europeus se reproduz no Brasil. É um nível similar de disparidade que este Flamengo tem imposto a seus concorrentes domésticos – o que, óbvio, não significa dizer que este time tenha o padrão dos europeus. Pela frente virá uma dura final com o River Plate, de prognóstico impossível. Só é possível cravar que, no que diz respeito a talento, o Flamengo é melhor.
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Flamengo tem motivos para se preocupar com o River Plate
É possível falar de intensidade, inteligência tática, qualidade técnica farta. Mas este Flamengo chega à final com outro traço notável: quando tem a bola, esbanja leveza, seu jogo flui a partir da mobilidade de seus jogadores. Há muito de confiança também. E mais. Jesus devolve ao futebol brasileiro algo que por muito tempo o marcou: as duplas de ataque técnicas, rápidas, que deixam rivais desnorteados por serem móveis. Gabigol e Bruno Henrique se exibiram, quase sempre posicionados entre zagueiro e lateral, criando dúvidas na marcação e abrindo latifúndios pelo campo. É difícil olhar para Gabriel e não enxergar um atacante de nível internacional. Pela movimentação ou pela qualidade técnica.
Tudo isso significa que o Grêmio foi mero sparring? Não, o placar tem muito a ver com as virtudes do Flamengo e também com questões de ânimo. Jogos de futebol são uma mistura complexa de fatores. O plano inicial do Grêmio funcionou, dados os problemas físicos que o fragilizavam. Renato, por 45 minutos, disfarçou a disparidade com um jogo bem pensado. Teve até momentos de superioridade.
Ao colocar Michel como terceiro meio-campista, abriu mão de seu modelo de construção desde a defesa, reforçou o poder de marcação e apostou em bolas mais longas. Só não abria mão das perseguições defensivas para marcar. A mobilidade dos jogadores do Flamengo, arrastando seus marcadores e tirando-os do lugar, claramente abria espaços, ora pelos lados, ora à frente da área. Mas este Grêmio camaleônico, muito concentrado e numa versão mais marcadora, ganhava duelos e não permitia escapadas dos rubro-negros nos espaços vazios. Teve até uma excelente chance no início, com Maicon. E ameaçava ganhar as costas da linha defensiva do Flamengo.
Nestas horas, é preciso uma chave para o cadeado. O jogo indicava que ela seria Éverton Ribeiro, por sua capacidade de giro, de drible, de livrar-se de marcadores após movê-los do lugar e desequilibrar a marcação rival. Ele criou as duas primeiras chances do Flamengo, que aos poucos se tornava superior.
Jorge Jesus pensara também em outro aspecto do jogo: os volantes do Grêmio, iniciadores de todas as jogadas. A pressão avançada do Flamengo concentrava-se no centro do campo. E claro ficou que havia um elo fraco: justamente Michel, inseguro nos passes. Deu uma bola mal tocada para Maicon, que, cercado por Gerson e Éverton Ribeiro, autor do bote, permitiu a transição rápida até o gol de Bruno Henrique. Três minutos antes do intervalo, o jogo mudava. A dificuldade imposta pelo Grêmio reforçava a capacidade de adaptação deste time de Jorge Jesus às situações.
Porque para deixar o Flamengo desconfortável, impedir que desse ritmo ao jogo, o custo que o Grêmio assumiu era perder poder ofensivo, apostar em poucas bolas. Ao sofrer o segundo gol na primeira ação da segunda etapa, e diga-se de passagem um grande gol de Gabigol, o plano gaúcho perdera sentido. Mas houve outro efeito: a concentração nos encaixes de marcação, nas perseguições, já não era o mesmo. O Grêmio perdeu também a fé. E o fez diante de um time impiedoso.
De novo, Éverton Ribeiro exibiria sua lucidez. Arrastou Cortez da lateral esquerda ao meio-campo, produzindo uma sequência de compensações que deixou Filipe Luís livre no lado oposto, o esquerdo. Éverton iniciou o lance, a bola atravessou o campo e Geromel fez pênalti. Gabigol bateu e o jogo se transformou num monólogo.
Dois gols em bolas paradas, um de Pablo Marí e outro de Rodrigo Caio, são provas de que este Flamengo é insaciável na busca pelo ataque. Outro de tantos paradigmas que Jorge Jesus quebra: intensidade, compactação, inteligência tática, a volta dos dois atacantes, ofensividade… O jogo mostrava outra. Contra um Grêmio que se especializou em privilegiar copas e poupar jogadores no Brasileiro, este Flamengo que trata cada compromisso como decisão sobrava também fisicamente. O rubro-negro pode até não ser campeão da América. Mas Jorge Jesus obriga o futebol brasileiro a pensar. Porque por mais que se argumente que o investimento do Flamengo é alto, que Gabigol é um atacante de nível raro no país, que Rafinha e Filipe Luís há poucos meses jogavam em dois dos principais times da Europa e dominam as laterais com excelência, que Gérson dita o ritmo do jogo, o fato é que os parâmetros de cobrança estão prestes a se transformar.
Um sintoma: encerrado o jogo, enquanto os jogadores permaneciam no campo longos minutos celebrando com a torcida, como numa despedida do Maracanã em noites de Libertadores, a sensação era de um público grato por algo mais do que os resultados. A torcida vê no campo um futebol que a representa.
Fonte: O Globo