Se, no último sábado, o abraço entre Roger Machado, do Bahia, e Marcão, do Fluminense, serviu de plataforma para que o primeiro criticasse o racismo estrutural do país, algumas dúvidas surgem: qual é o tamanho do racismo do futebol, onde tantos craques negros brilham, mas poucos negros ascendem a posições fora de campo?
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Só por estar empregado como diretor de futebol da Ferroviária, Roque Júnior se considera “uma exceção que confirma a regra?. O ex-zagueiro fez parte da seleção que conquistou o penta na Copa do Mundo em 2002 e do Milan que venceu a Champions de 2003. Desde que pendurou as chuteiras, ele permanece no universo do futebol: dono de uma licença Pro (a mais alta) da CBF e de outra na categoria A (a segunda mais alta) da Uefa, foi técnico no XV de Piracicaba e no Ituano. Como dirigente, também passou pelo Paraná.
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? Não houve, na história do Brasil, a preocupação em inserir o negro de fato na sociedade, de dar a ele acesso à educação e ao mercado de trabalho. Isso contribuiu decisivamente para um cenário de perpetuação de pobreza. ? afirma o ex-jogador. ? Não deveria ser necessário que um negro precisasse ter uma carreira de sucesso no futebol para investir na própria educação.
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No universo acadêmico do futebol, negros ainda são minoria. Como a CBF não pede autodeclaração de cor aos alunos, não há registros; mas a maioria branca é visível nas fotos da turmas A e Pro de 2018.
Obter um diploma apto a trabalhar na principal divisão do país é caro: a para fazer o curso Pro da CBF, é preciso desembolsar pouco mais de R$ 19 mil.
O caso Andrade
O contexto socioeconômico é apontado pelo ex-lateral e comentarista Júnior como explicação para a pouca representatividade negra nos cargos de comando.
? É mais difícil porque, no Brasil, o negro geralmente vem de baixa renda ? diz Júnior, que foi técnico de Flamengo e Corinthians.
A resistência é antiga. O próprio Maestro se lembra de um episódio de 2005, em que, como diretor de futebol, viu o ex-meia Andrade ser cotado para assumir o comando do Flamengo, até ter seu nome vetado:
? Tinha gente dentro do clube que dizia que o Flamengo não podia ser comandado por um negro.
Andrade teve sua chance quatro anos depois e levou o Flamengo a um título brasileiro após 17 anos. Desde então, todos os treinadores campeões foram brancos, e Andrade viu sua carreira se limitar a oportunidades em clubes como Brasiliense-DF e São João da Barra-RJ.
Apesar disso, o ex-volante atribui sua saída do Flamengo a uma movimentação política. Hoje, acredita haver menos profissionais negros dispostos a percorrer todas as etapas de capacitação. Essa visão é compartilhada por Júnior:
? Marcão (Fluminense) e Roger Machado (Bahia) estão aí para provar que quem se prepara tem chances.
Nem todos querem a prancheta, é verdade. O ex-zagueiro Juan (Flamengo, Roma), 40 anos, por exemplo, se prepara para ser dirigente na Gávea ? o clube investe em bolsas e intercâmbios. Já o ex-atacante Grafite, há um ano comentarista do Grupo Globo, entende que não é sua vocação e recorda que a função exige preparação dedicada.
? Ser treinador não é só ajustar o time e colocar onze em campo. Há toda uma gestão de comportamento. Lidar com vestiário, com dirigentes é muito complicado. Depois do treino, tem que ir na parte de análise tática, falar com nutricionista, médico… Acho que eu não teria essa paciência toda ? afirma Grafite.
Resistência ao comando
Marcelo Carvalho, que coordena o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, vê nuances mais graves no problema:
? Quando surgiram os primeiros questionamentos sobre o sumiço do Andrade, houve quem dissesse que ele tinha um perfil muito calmo, sem pulso no vestiário. É no mínimo curioso, porque há vários com esse mesmo perfil, sem nenhum grande título, que estão sempre cotados. Não existe outro caso de campeão brasileiro similar ao do Andrade.
Carvalho afirma que o racismo estrutural no Brasil faz com que pessoas não negras tenham dificuldade de serem comandadas por pessoas negras. Para ele, a resistência existente no mundo do futebol é a mesma de grandes empresas.
? Quantas companhias de grande porte no país têm presidentes, vice-presidentes, CEOs ou porta-vozes negros? ? provoca. ? O treinador também é um cargo de gestão. Quando temos profissionais com um mesmo perfil e currículos parecidos, há uma tendência de os não negros receberem, sim, mais oportunidades.
O coordenador do observatório diz que “os poucos técnicos que negros que surgem desaparecem do mercado ao longo dos anos”.
Nessa afirmação se encaixa, por exemplo, Cristóvão Borges. Com passagens por Fluminense, Flamengo, Athletico, Vasco e Corinthians, está sem clube desde 2017. Recentemente, Cristóvão admitiu que foi uma opção sua se dar um ano sabático para estudar e reavaliar sua carreira ? obteve a licença Pro da CBF.
? Quando saí do Vasco, vinha de uma grande sequência de trabalhos. Isso me tirou a oportunidade de fazer avaliações do que eu tinha feito ? disse recentemente.
No sentido contrário, rema Roger Machado. Depois de impressionar no Grêmio, ele fez trabalhos menos elogiados no Atlético-MG e no Palmeiras, com pausas entre eles, antes de voltar a ser celebrado por um competitivo Bahia. Além de ser hoje o treinador negro mais prestigiado, Roger se tornou um “ativista político dentro do futebol”, como ele mesmo definiu:
? Negar e silenciar é confirmar o racismo. Minha posição como negro na elite do futebol é para confirmar isso.
Fonte: O Globo