Na plataforma 42 da Rodoviária Novo Rio, Leonardo Mello, 48 anos, espera na fila do ônibus ao lado de seus pertences, empacotados em dois isopores, quatro malas, um mochilão e um saco de lixo preto – de onde tira um travesseiro com fronha rosa-pink para encarar as cerca de 24 horas de estrada até Goiânia.
Ele tem paralisia cerebral e dificuldades motoras, mas carrega sozinho suas malas até o alçapão de bagagens do ônibus que o levará a sua nova jornada.
Há pouco mais de um ano, Léo vivia uma fase de otimismo. Estava se tornando conhecido por sua barraca de água na avenida Atlântica, entre as praias do Leme e de Copacabana, com a logomarca da “Água do Léo” estampada no isopor e no uniforme azul.
Bacharel em Direito, buscava economizar o suficiente para fazer um curso preparatório para o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e realizar o sonho de advogar.
Mas ele perdeu seu alicerce em fevereiro, com a morte de sua mãe, Ruth Valderez.
“Foi um tombo para mim. Eu perdi minha mãe, perdi casa, perdi comida, perdi tudo. Apesar de eu trabalhar, eu era dependente dela. Ela que me ajudava, que mantinha tudo na casa, que criava o meu viver”, diz à BBC News Brasil, minutos antes embarcar para Goiânia.
Depois da morte da mãe, cuja aposentadoria sustentava os dois, Léo teve que devolver o apartamento conjugado que alugavam no Leme. E sumiu da praia. Vendeu alguns móveis, doou outros, jogou “um monte de coisa no lixo”. Trancou o que sobrou em guarda-móveis na rodoviária, e deixou o Rio de Janeiro.
Tentou a sorte no Recife e se fixou temporariamente em Goiânia, onde mora seu irmão. Uma amiga lhe emprestou um apartamento, mas não tem conseguido pagar as contas de luz, água e gás, e tem visto as dívidas se avolumarem.
Nos últimos meses, a depressão que já enfrentara em outros momentos da vida voltou a ameaçar, na esteira das dificuldades financeiras e da falta de perspectiva.
“Eu estou me sentindo triste e sozinho, porque a minha mãe morreu recentemente. Eu entrei em fase de depressão, mas bons amigos estão me ajudando e me incentivando. A vida continua”, afirma, sorridente, dando tchau da porta do ônibus.
Suporte financeiro e emocional
Ruth Valderez morreu de câncer em fevereiro, três meses depois de descobrir um tumor no fígado. A doença já havia se alastrado por outros órgãos.
Era ela quem ajudava Léo a abastecer a barraca na praia, onde o filho anunciava em voz alta: “Olha a água gelada!”. Anos atrás, ela o acompanhava às aulas de Direito na UniverCidade, ajudando-o a copiar as matérias e acompanhar as disciplinas.
“Além de todo o suporte financeiro, era sua mãe que lhe dava o suporte emocional”, diz a advogada Débora Futscher, amiga desde a faculdade de Direito, onde o defendia quando sofria bullying de outros estudantes.
Léo está entrando com recurso no INSS para buscar receber pensão por morte da mãe, de quem dependia economicamente.
“Seu primeiro pedido foi negado por ele ter dado entrada em Goiânia, domicílio diferente de onde morava com a mãe, e agora temos que esperar de seis meses a um ano por uma conclusão positiva ou negativa”, explica Débora.
Enquanto isso, a amiga montou uma vaquinha online para conseguir recursos para Léo e vem tentando ajudá-lo a conseguir um emprego, busca que tem sido infrutífera.
“O Léo é esforçado, batalhador, bem articulado, atua muito bem na parte administrativa. Mas ninguém quer empregar pessoas com paralisia cerebral”, lamenta. “A lei determina cotas para pessoas com deficiência, mas as empresas preferem contratar pessoas com deficiências mais leves.”
Débora vem incentivando Léo a postar fotos e vídeos em seu Instagram para que seguidores acompanhem seus passos. Tem conseguido ajuda de pessoas e empresas, como um hostel que abrigou Léo gratuitamente em julho. Ele esteve no Rio para buscar documentos e recuperar os bens que estavam presos no depósito.
“Ele estava quase indo dormir na rua, num papelão. Fiquei com o coração partido”, diz a amiga.
Filho da violência doméstica
Léo nasceu em Anápolis, Goiás, depois de quase sofrer um aborto precipitado pela violência do pai.
Sua mãe, Ruth Valderez, estava grávida de cinco meses quando tomou um tiro na altura do coração que atravessou o pulmão. O autor do disparo foi o próprio marido, que tinha violentas crises de ciúme após beber.
Na época, Ruth tinha 24 anos. Estava casada há quatro e tinha outros dois filhos.
“Os médicos propuseram um aborto quando verificaram que eu estava grávida”, contou Ruth à BBC News Brasil em março de 2018.
“Mas não aceitei, porque entendi que estava preparada para o filho que viesse. Ele tem saúde e tem as suas limitações. A gente foi convivendo e crescendo com isso. Ele foi superando as limitações e hoje é uma pessoa capaz de viver sozinha e se sustentar”, afirmou à época.
O pai ficou preso por cerca de um ano. Nunca procurou conhecer Leonardo. Ruth criou os três filhos sozinha, com a ajuda da família.
Diagnosticado com paralisia cerebral leve, Léo teve sequelas na coordenação motora que provocam movimentos involuntários e dificuldade para andar e falar. Também teve perda auditiva severa em ambos os ouvidos.
Estudou em uma escola para crianças com necessidades especiais até os médicos atestarem que sua capacidade mental não havia sido afetada. Foi alfabetizado aos 10 anos em Goiânia, para onde a família havia se mudado em busca de melhor tratamento para o caçula.
“A paralisia cerebral me trouxe, no começo, uma rebeldia, uma revolta. Quando eu via as crianças brincando de pique-esconde, eu sempre era o ‘carta branca’. Ou seja, eu não podia brincar. Eu era excluído”, relembrou, em entrevista à BBC News Brasil em 2018.
“Quando cresci, comecei a perceber os olhares… Eu sofri muito bullying na escola. Sofri muita discriminação, muito preconceito. Na adolescência, eu queria namorar, mas não conseguia.”
Léo terminou os ensinos fundamental e médio com muita dificuldade, pela falta de agilidade em copiar a matéria e dificuldade de ouvir o que era dito em sala de aula.
“Eu era muito dedicado e queria aprender. Eu queria ser uma pessoa independente, livre. A minha vontade ajudou muito a minha caminhada.”
Carreira jurídica: frustração e sonho
Apaixonado por andar a cavalo, Leo decidiu prestar vestibular para Veterinária. Não passou e acabou optando por sua segunda opção: Turismo. No decorrer do curso, teve a sensação de que a área discriminava pessoas com deficiência, “trabalhando muito com a aparência”.
Frustrado, mudou-se para São Paulo e começou a fazer Direito. Com a mãe recém-aposentada, porém, os gastos com a faculdade particular que cursava se tornaram insustentáveis. Depois de um ano estudando em São Paulo, Léo conseguiu uma bolsa de 70% na UniverCidade (faculdade que deixou de existir em 2014), no Rio.
Durante um ano, encarou a estrada três vezes por semana, com direito a passagem interestadual gratuita por ser deficiente. Saía de São Paulo à meia-noite, chegava de manhã no Rio, assistia às aulas e voltava para São Paulo de noite.
A maratona deteriorou sua saúde e seu rendimento acadêmico. Até que Léo caiu da escada na faculdade e quebrou a tíbia. Passou por uma cirurgia e trancou o curso enquanto se recuperava na casa da avó em Goiás.
Foi então que decidiu se mudar para o Rio de Janeiro. Morou sozinho no conjugado no Leme por dez anos. Depois, sua mãe veio morar com ele, ajudando a tomar conta da barraca na praia.
Após a formatura, em 2011, Léo trabalhou por quatro anos em uma empresa de telecomunicações, onde fazia protocolos de pedidos judiciais de quebra de sigilo telefônico.
Foi dispensado em uma demissão em massa. Quando a mãe morreu, já estava há mais de três anos desempregado.
Léo ganhou um processo na Justiça do Trabalho por ter sido demitido sem justa causa. Mas a empresa está em recuperação judicial, e a indenização ainda não foi paga.
Em conversa com a BBC News Brasil em 2018, Ruth desabafou sobre a dificuldade de seu filho conseguir emprego, afirmando haver uma “discriminação velada”.
“Existem leis que obrigam empresas a contratarem pessoas com deficiência, só que elas contratam, mas não procuram conhecer a capacidade desse indivíduo. Colocam ele ali e pronto, cumpriram a lei. Ainda é preciso discutir muito a questão do respeito ao indivíduo que tem limitação, mas tem capacidade para desenvolver uma série de atividades”, afirmou.
Frustrado por não conseguir continuar os estudos e atuar na área em que se formou, Léo teve depressão. Ao vê-lo isolado e triste, sua irmã sugeriu que fosse vender balas nas ruas para ter alguma renda. Em entrevista em 2018, Léo lembrou sua reação inicial.
“Fiquei pensando: ‘Ai, mas que vergonha… Um bacharel em Direito sair por aí vendendo balinha? Que decadência’. E comecei a sofrer mais ainda com isso. Porque quando você se forma, você quer status. Você quer melhorar. E quando você vê que nadou, nadou para não chegar a lugar nenhum… Isso me deixava triste,” explicou ele.
Até que um dia decidiu ir para as ruas. Usou os R$ 40 que a mãe havia lhe dado de presente de Natal para comprar uma caixa de isopor onde cabiam dez garrafas d’água. Começou a vender em um cruzamento enquanto o sinal estava fechado, mas passou a sentir muitas dores nos pés por ter que andar rápido entre os carros.
Precisou, então, juntar dinheiro para comprar uma barraca para trabalhar no calçadão. Com a ajuda da sobrinha, que na época tinha 13 anos, estampou em camisetas, chapéus e caixas térmicas: “Água do Léo – GELAAADA”.
A mãe se orgulhava. Falava que ele era “mais que um vendedor de água”: “Ele não é só um ambulante, é um microempresário. Ele pensa no cliente, escolhe o melhor produto, pensa na higiene, personaliza esse atendimento e procura servir o cliente da melhor forma possível”, afirmou Ruth, em 2018.
Novos desafios
Léo esteve no Rio no início de julho para tentar resgatar os pertences que deixou no guarda-móveis. A empresa ameaçava leiloar seus bens, já que ele não estava pagando a mensalidade do depósito. Conseguiu quitar a dívida com os recursos da vaquinha online embarcou com seus pertences para Goiânia.
“Essas coisas aqui são documentos, roupas, muita lembrança que eu guardei da mamãe. É a única coisa que me sobrou da minha casa”, afirmou na rodoviária, apontando para seus pertences.
Isso e sua inseparável cachorrinha, Pandora, que levou para Goiânia. “Ela está comigo até hoje. É minha única companheira. Ela também sofreu muito pela perda da minha mãe, era muito apegada”, diz Léo.
A advogada Débora Futscher, sua amiga desde a época da faculdade, diz que a meta de Léo deixou de passar na prova da OAB. “Ele entendeu que vai ser difícil atuar como advogado e quer estudar para concurso para ser técnico analista”, afirma Débora, que conseguiu gratuidade em um curso online para concursos públicos.
Em 2018, na conversa com a BBC News Brasil, Léo contou ter se sentido humilhado no início ao ter que vender água na rua. Afinal, é bacharel em Direito. Depois, passou a sentir orgulho.
“Por mais humilde que seja a minha barraquinha, pelo menos estou conseguindo atingir meu ideal, que era trabalhar e ocupar o meu tempo. Eu me sinto realizado, mas não completamente, porque a gente nunca se satisfaz. A gente sempre quer mais e mais”, afirmou.
Hoje, levando o pouco que restou da vida no Rio para Goiânia, diz querer “continuar lutando, batalhando”:
“Não só para mim, mas para toda a categoria de paralisados cerebrais, que têm muita dificuldade de entrar no mercado de trabalho. É uma das categorias de deficiente que mais encontram barreira na sociedade e no mercado de trabalho, enfim. Eu quero ajudar todos”, afirma.
Menino do Rio
Trabalhando na praia, Léo rapidamente ganhara a simpatia de outros trabalhadores da orla, como o gari e rapper João José Luiz Júnior, conhecido como Jota Jr – que no ano passado postou um vídeo de Léo que viralizou nas redes sociais. Foi assim que a história de Léo chegou ao conhecimento da BBC News Brasil.
Apesar de ter nascido em Goiânia, Léo não deixa de sonhar em voltar para o Rio.
“O Rio de Janeiro significa tudo na minha vida. Aqui foi onde eu consegui vencer como pessoa com paralisia cerebral. Eu consegui estudar, me formar, fazer bons amigos. O Rio me proporcionou oportunidades maravilhosas”, afirma.
“Estou indo embora daqui por dificuldades financeiras, mas eu tenho fé em Deus que tudo será resolvido. A vida continua, eu vou ser forte, essa fase vai passar.”
Fonte: Terra Saúde