O abismo que ainda separa o futebol masculino e feminino no Brasil fez os passos com a mesma chuteira levarem Bruno Henrique e Samhia Simão a realidades diferentes. Os amigos que hoje representam o Flamengo superaram juntos as dificuldades da pobreza e do preconceito compartilhando calçados de número 40 na tentativa de realizar o sonho de jogar futebol em Concórdia, Belo Horizonte. No passado, porém, tudo foi mais complicado para a menina que queria jogar bola, mas era proibida pelo pai e não tinha vaga na escolinha do bairro.
Hoje, Samhia faz parte do time da Marinha que veste a camisa do Flamengo em parceria, é terceiro sargento, e vive no CEFAN, onde treina durante a semana. Uma vez por mês, a jogadora de 28 anos vai para a casa, no mesmo lugar em que nasceu e viu Bruno Henrique, da mesma idade, dar os primeiros dribles no campo de terra próximo à escola onde estudavam. Ao fim da classe, os dois corriam em direção ao campo, mas só o então menino praticava o esporte que amava livremente. Em casa, o pai de Samhia, que lutava boxe, assim como o irmão dela, não admitia a filha com a bola nos pés.
? A gente saía da escola, corria na rua para pegar a trave dos adultos. O Bruno jogava na escolinha do “Grapete?, que até hoje faz um trabalho lá, mas eu por ser mulher não podia. Tinha que assistir a eles jogando fim de semana e só brincava durante a semana ? recorda Samhia.
A primeira chuteira do pai ela só ganhou aos 19 anos, depois de arrancar a cabeça da boneca, cortar o cabelo e fazer uma bola improvisada. Antes disso, aos 17, teve a primeira oportunidade no time feminino do Atlético-MG. Quem lhe deu a primeira chuteira foi Amanda Moura, irmão de Rafael Moura, o He-Man. O primeiro par passou a ser dividido com Bruno Henrique, que jogava no Inconfidência, time do bairro. Durante a semana, Samhia usava a chuteira no gramado, e emprestava para o amigo usar no campo de terra.
? A regra era devolver limpa ? conta ela.
Intercâmbio nos EUA e boxe como resposta
Quando a carreira de Bruno Henrique deslanchou no Goiás, Samhia recebeu oferta de um amigo de seu pai para jogar basquete nos Estados Unidos, com bolsa de estudos. Mas ela preferia futebol. A família cedeu, e a jovem conseguiu bolsa para um curso de mercado internacional, no qual se formou e trabalhou na área. Com menos preconceito, atuou em equipes amadoras dos Estados Unidos com nomes como a atacante Morgan, hoje na seleção americana. Ao se deparar com mais uma diferença, cobra melhorias no esporte no Brasil.
? Aos poucos a gente vai ganhar espaço. Se ninguém mostrar, o povo não sabe. Vê a Andressinha, a Barbara, a Mônica, que são referências além da Marta, Cristiane, mas não têm visibilidade. São meninas que jogam na Europa ? diz.
Em um dos retornos ao Brasil na juventude, Samhia cedeu aos apelos do pai e treinou boxe. Subiu no ringue três vezes e chegou a conquistar um torneio. A esta altura, ainda não havia nocauteado o preconceito.
? Lutei só pra provar para o meu pai que eu podia. Faço por hobbie hoje. Minha paixão era futebol desde pequena ? explica.
Um Ninho distante
Enquanto Bruno Henrique trilhava carreira internacional no Wolfsburg, da Alemanha, Samhia ficou com visto vencido nos Estados Unidos e voltou para o Brasil em definitivo. Foi quando apareceu o Flamengo, no fim de 2016. Bruno Henrique chegou só em 2019. De lá para cá, Samhia nunca visitou o Ninho do Urubu. Chegou a comparecer em um churrasco com o amigo, antes da saída dele do Santos, e disse que o esperava no Rio. Mas depois só se falaram por telefone.
? Viemos para o mesmo time, sonho desde pequeno. Hoje ele é referência masculina e eu feminina no bairro ? relata, orgulhosa, apesar do preconceito.
? As dificuldades que a gente enfrentou eram as mesmas. Por mais que seja masculino e feminino, realidades diferentes, também tem preconceito de cor de pele. A gente sustentava um ao outro ? recorda.
Hoje, cada um anda com os próprios pés, literalmente. Apesar das diferenças no contracheque – Bruno Henrique recebe pelos menos cem vezes o salário de Samhia ? a rotina no Rio é distinta e o contato restrito.
? Contato não tem muito porque a gente treina no CEFAN e eles no Ninho. Nunca vi o Ninho. Nunca teve oportunidade. Falo com o Bruno por mensagem e quando vou para casa a gente se vê ? conta a jogadora mineira. A realidade é outra. Enquanto Bruno Henrique tem um filho pequeno, que fica com a mulher, a atacante adia o sonho por saber que não conseguiria dividir as funções.
? Não cabe agora. Muito sacrifício. Para o homem a vida continua. É arriscar carreira ? sentencia.
Fonte: O Globo