Seria muito cômodo pegar carona num 5 a 0 para decretar que a seleção brasileira resolveu todas as interrogações que a cercam e se transformou num novo time. Mas não é justo fazê-lo. Primeiro, porque o mundo real é um meio caminho entre a depressão e a euforia. O Brasil vive um processo que envolve mudanças na forma de jogar e trocas de jogadores que já alteraram meia equipe titular. E uma mudança tão radical não aconteceria da noite para o dia. É irreal.
A goleada não se explica por uma transformação absoluta da seleção. O time mostrou virtudes que devem ser valorizadas, mas é fato que o jogo que teve circunstâncias altamente favoráveis, talvez difíceis de se repetir. E apesar do placar elástico, construído diante de um Peru inoperante e abatido após se ver em desvantagem, a partida não basta para encerrar muitas das dúvidas sobre o futuro da equipe.
Qualquer análise precisa levar em conta que o Brasil chegou aos 2 a 0 após 20 minutos absolutamente atípicos. O time não era confortável com a posse de bola, o Peru impunha dificuldades, tinha volume e era até um pouco superior. Mas um gol saído de um córner e o lance um tanto bizarro do goleiro Gallese, aproveitado com um misto de inteligência, persistência e categoria por Roberto Firmino, mudaram a cara da partida. Daí em diante, a seleção fez muitos movimentos interessantes com a bola, criou jogadas, teve lances vistosos. Mas fez tudo isso diante de um rival bem menos intenso e que oferecia mais espaços. Antes do jogo, havia o consenso de que a seleção precisava melhorar sua capacidade de atacar defesas fechadas, adversários posicionados perto da própria área. Este teste não foi feito diante dos peruanos.
Tite manteve a aposta num ataque mais posicional, ou seja, com zonas do campo que deveriam ser ocupadas por determinados jogadores. Novidades na escalação, Éverton jogava bem aberto na esquerda, Gabriel Jesus partia da direita e Firmino do centro. Quando o time se instalava em campo ofensivo, Jesus buscava a área, de onde Firmino recuava para ajudar na articulação. Eventualmente, Daniel ocupava a ponta. Mas os dois primeiros gols vieram antes que este jogo fluísse. O início brasileiro contra a Venezuela, por exemplo, exibira um rival mais dominado, mais submetido ao jogo da seleção. Mas o gol não saiu. E, quando isto ocorre, a tendência é o jogo se complicar. Contra o Peru, os gols vieram cedo.
Mas por que o Brasil deixou tão boas sensações após abrir vantagem? Não foi apenas porque o Peru afrouxou a marcação e, em alguns momentos, se adiantou dando espaços para a seleção acelerar. Isto ocorreu, como no lance em que Coutinho achou Éverton às costas da defesa e o Brasil quase fez o que seria o terceiro gol. Mas houve também movimentos um tanto diferentes das duas primeiras partidas e que funcionaram bem. Só o futuro dirá o quanto as circunstâncias convidativas foram determinantes.
Foi ótimo o entendimento pela direita entre Daniel Alves, Gabriel Jesus, a aproximação de Roberto Firmino e as chegadas de Arthur para criar trocas de passes. Outra mudança importante foi o entendimento entre Arthur e Coutinho. O ex-gremista, embora siga iniciando a construção alguns metros atrás, conseguia progredir junto com o time. Além disso, ele e Coutinho em diversos momentos romperam a rigidez de posicionamento: inverteram lados do campo, por vezes buscaram o mesmo lado e se aproximaram para dialogar, permitiram que a troca de passes fluísse mais. O time não se partia entre o quarteto ofensivo e os demais. Ter mais companhia para dialogar fez Philippe Coutinho ser mais efetivo no jogo, embora a marcação mais frágil do Peru o tenha deixado menos “encaixotado” entre as linhas adversárias.
Além disso, para ser um ponta fixo pela esquerda, como Tite deseja, Éverton se mostra mais à vontade. Pela direita, o treinador quer um ponta que busque a área, por isso optou por Jesus. As características casavam mais com os objetivos do treinador.
Há outras observações individuais a fazer. Primeiro, o jogo reafirma o quanto será difícil substituir Daniel Alves num futuro próximo, em especial nas tarefas ofensivas. É capaz de buscar o meio para ser mais um organizador, eventualmente busca o lado do campo ou mostra técnica e inteligência para fazer jogadas como a do quarto gol, aproveitando o pivô de Firmino e infiltrando na defesa rival.
Por falar em Roberto Firmino, é brutal sua capacidade de gerar jogo para os companheiros. Na seleção, não dispõe de colegas tão habituados a ele quanto no Liverpool, onde cada movimento de saída da área pressupõe a infiltração de Salah ou Mané. Mas algumas jogadas começam a sair a partir de sua inteligência de jogo. Em dados momentos, buscou o meio e trocou passes como mais um articulador. Em outros, foi para a ponta e inverteu com Jesus. Sem contar os espaços que abre para penetrações. Sem falar no quanto Arthur faz a troca de passes fluir.
Lógico que não se pode desconstruir uma goleada a esta altura. Há qualidade técnica para produzir momentos vistosos, bonitos. Torná-los constantes depende de tempo, maturação de um time. Hoje, a seleção está em meio a um processo. Seu desafio é repetir os melhores momentos deste sábado em contextos menos favoráveis.
Fonte: O Globo