Dia 28 de junho de 2008, João Geraldo Netto recebeu o diagnóstico que mudaria sua vida: era portador do vírus HIV, sigla em inglês para o Vírus da Imunodeficiência Humana. O vírus afeta células do sistema imunológico, podendo destruí-las se a pessoa não procurar o tratamento antirretroviral. Quando o organismo fica totalmente incapaz de lutar contra infecções, o paciente desenvolve a aids.
No caso de João, a descoberta foi tardia. Tinha 20 anos quando se infectou por meio do sexo desprotegido, mas descobriu apenas aos 26, durante um exame de rotina: “Um médico pediu e eu nunca tinha feito, então a percepção do risco não veio de mim”. Como tinha um relacionamento fixo e o ex-marido era negativo, jamais imaginou que pudesse ter o vírus, principalmente porque nunca apresentou indícios. O tratamento veio quatro anos depois da descoberta, ou seja, após mais de dez anos convivendo com o vírus em seu corpo. “Quando me infectei 17 anos atrás, só podia iniciar o tratamento quando adoecia. Como eu nunca adoeci, fiquei 10 anos sem tratamento. Quando mudou a regra, eu pude começar”, esclarece.
De acordo com um relatório divulgado no final de 2018 pela Unaids, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids, quase 37 milhões de pessoas em todo o mundo vivem com HIV. Dessas, quase 40% não têm acesso a medicamentos. Muito por conta dos avanços na saúde, o número de novas infecções caiu 47% desde o pico em 1996 e continua diminuindo com o passar dos anos.
HIV, um vírus difícil de tratar socialmente
Conhecido popularmente por coquetel, a Terapia Antirretroviral (TARV) surgiu na década de 1980 para combater a multiplicação do HIV no organismo da pessoa. Os medicamentos não matam o vírus, mas impedem sua replicação. Aqui no Brasil, são distribuídos gratuitamente somente pelo SUS (Sistema Único de Saúde) em mais de 20 tipos diferentes de antirretrovirais, o que contribui para a redução da velocidade de disseminação da doença.
Quando começou o tratamento, João não se adaptou ao primeiro esquema — nome dado à primeira linha de remédios, a mais geral de todas, definida pelo Ministério da Saúde com base em estudos científicos. O medicamento acarretou em diversos efeitos colaterais, como hepatite medicamentosa (inflamação no fígado) e dislipidemia (desregulamento das gorduras do corpo). Após trocar o remédio três vezes, se adaptou ao quarto esquema e não possui mais nenhum efeito colateral.
Como realiza o tratamento há anos, João passou a se enquadrar na categoria “indetectável”, em que não é possível detectar a presença do vírus no organismo. Isso ocorre porque o tratamento interrompe a cadeia de transmissão que replica o vírus na corrente sanguínea, deixando-o adormecido nas células do corpo. No entanto, isso não representa a cura para um portador de HIV: “Se eu parar de tomar o medicamento, o vírus sai daqueles reservatórios”.
O termo agora também faz parte de seu trabalho no YouTube, rede social em que acumula mais de 18 mil inscritos. Com o canal Super Indetectável, João reforça questões importantes para soropositivos, como o uso correto dos medicamentos e cuidados com a saúde.
No Brasil, existem duas formas de prevenção disponíveis gratuitamente para a população. A PEP (Profilaxia Pós-Exposição) é usada após uma provável exposição ao vírus. No entanto, é um tratamento intensivo que dura 28 dias e deve ser iniciado dentro de 72 horas após a exposição, já que sua eficácia diminui com o passar do tempo. Já a Profilaxia Pré-Exposição, chamada de PrEP, consiste no uso de antirretrovirais por uma pessoa soronegativa. É o método mais indicado para reduzir o risco de contrair o HIV e indicado para parceiros sorodiferentes.
A distribuição dos medicamentos tem como população-chave moradores de rua, prostitutas, travestis e gays, grupo de pessoas mais afetadas pelo vírus. “São pessoas que, por diversas questões sociais e comportamentais, são mais vulneráveis. Elas têm várias barreiras, são marginalizadas e não têm acesso aos mecanismos da saúde”, esclarece João, após anos de estudo sobre o tema em trabalho no Ministério da Saúde. Para ele, é uma doença como qualquer outra, que não vê classe social. “Eu costumo falar que o HIV não é um problema clínico difícil de tratar. Hoje, as milhares de pessoas que morrem anualmente, não é porque tomam remédios devastadores. Não mais. É porque, na verdade, é difícil de tratar socialmente”, reflete.
Quando trata-se de transmissão do HIV, há muitos mitos e tabus que ainda precisam ser esclarecidos. Sexo sem camisinha, transfusão de sangue e objetos cortantes originam a grande maioria dos casos. Grávidas também correm o risco de passar o HIV ao bebê em três situações: durante a própria gestação, no parto ou na amamentação. A informação de que o beijo, suor ou abraço podem transmitir a doença está incorreta, assim como compartilhar copos, talheres, sabonetes, toalhas e lençóis.
‘Comecei a dar mais carinho e valor para coisas que não dava’
“Quando eu descobri, pensei que ia morrer, principalmente porque meu parceiro era negativo, então eu só podia ter pego antes dele. Percebi que eu já vivia com o vírus há mais de seis anos”, relembra. A primeira pessoa a saber da notícia foi seu ex-marido, com quem tinha um relacionamento fixo desde os 20 anos. Apesar de acreditar em algumas hipóteses, João diz que o parceiro não teve interesse em pesquisar a fundo os motivos para não ter contraído a doença.
Já a família ficou sabendo meses depois, quando ele considerou que já estava restabelecido e pronto para o diálogo. “Organizei documentos, exames, coisas da internet, e levei pra minha mãe. Sentei na cama e falei que queria conversar”, conta. Num primeiro momento, sua mãe pensou que fosse câncer, mas logo em seguida João revelou o diagnóstico positivo do HIV. Emocionado, ele relembrou o momento: “Ela ficou parada olhando para mim. Eu falei que estava tudo bem, mostrei minha pasta com os exames. Depois que terminei de falar, ela disse: ‘Tudo bem, doenças acontecem, mas uma coisa que você pode fazer e que vai me matar é você não se tratar. Se um dia eu souber que você não está se tratando, você vai me matar aos pouquinhos”.
Em 2010, dois anos após o diagnóstico, um trabalho traria a informação à tona para toda a família. “Eu fui convidado para fazer uma campanha do Ministério da Saúde. Eu já tinha o canal [no YouTube], mas não falava que era positivo, só falava do HIV“, conta. O convite incluía a participação de João na campanha nacional do Dia Mundial de Luta Contra Aids, celebrado em 1° de dezembro. Ele aceitou e fez fotos ao lado de artistas conhecidos, como Bruno Gagliasso e Luana Piovani. Ao ver as imagens na internet, uma prima perguntou sobre o assunto e ele pediu para que ela contasse à família, que estava reunida.
Após nove anos, terminou o casamento com seu ex-marido. Depois conheceu André na faculdade, com quem hoje é casado. Como estava iniciando um relacionamento com uma nova pessoa, João achou importante contar que era soropositivo. O que ele não esperava é que o parceiro já soubesse disso por meio da campanha de 2010. “Ele falou que tudo bem e pediu para que eu ensinasse como funciona”, relembra. Ele explica que, teoricamente, André não precisa tomar nenhum medicamento, já que João está indetectável e não transmite o vírus. Porém, ele faz uso da PrEP (antirretrovirais para pessoas soronegativas) e realiza a testagem de tempos em tempos.
Apesar da rotina ter se modificado em momentos pontuais, João confessa que as consequências positivas agregaram em sua vida. “Depois que eu descobri que tinha HIV, muita coisa mudou. Eu passei a viver as coisas mais intensamente, pois tive a certeza que podia morrer. Quando você descobre que tem uma doença, percebe que a vida é muito frágil”, pondera. A reflexão vai além: “Eu penso que um dos maiores objetivos da morte é refletir sobre a vida. Comecei a dar atenção para coisas que não dava, com um maior carinho, maior valor. O HIV me trouxe esse lado positivo, de sempre enxergar o copo meio cheio”, completa. / Colaborou Marcella Costa
* Estagiária sob supervisão de Charlise Morais
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Fonte: Terra Saúde