SALVADOR – Por mais cruel que possa parecer, o cargo de treinador da seleção brasileira impõe ao seu ocupante compromissos que vão além de convocar os jogadores mais adequados e montar um time. É quase um posto de embaixador do futebol do país, um relações públicas, alguém que se comunica com a sociedade.
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Tite cumpre bem tais exigências e, diga-se, nunca renunciou a transmitir mensagens sobre ética, conduta, valores associados ou não ao jogo. Ao contrário, incorporou de tal forma estes temas ao discurso que terminou por colocar em evidência uma incômoda contradição, que existe: ter o filho como parte da comissão técnica. É impossível dissociar um time de futebol do contexto que a sociedade vive, com suas demandas e questionamentos. Muito mais difícil ainda fazê-lo quando se está à frente da seleção. E o momento vivido pelo país torna ainda menos palatável a presença a de Matheus Bachi no corpo técnico. É algo combatido no mundo corporativo e que colide com o discurso ético do treinador.
Este é um ponto. Outro, é assegurar que uma entrevista coletiva pós jogo não precisa, necessariamente, se ater a questões de campo. O futebol de hoje não permite acesso tão farto a personagens tão importantes. E as coletivas dão a jornalistas direito de fazer qualquer pergunta, como fez o jornalista Breiller Pires, do “El País”.
O ponto realmente importante deste debate é como ele traz à tona elementos distorcidos do ambiente do futebol. E como a reação da opinião pública, em qualquer tema relacionado à seleção ou aos clubes, varia em função de resultados.
O ambiente no futebol é marcado pela desconfiança e, como resultado, pela autoproteção. É preciso entender tais peculiaridades para que se tenha uma capacidade de ponderar e de colocar a discussão num parâmetro mais realista. Tite não se torna uma pessoa pior, um sujeito de caráter duvidoso, porque empregou o filho na comissão técnica. Ele cresceu num meio que naturalizou tal comportamento. E que, muitas vezes, o encarou como antídoto para armadilhas que treinadores enfrentam ao trabalhar, a cada temporada, em empregos e ambientes diferentes.
Treinadores cercam-se “dos seus” por uma relação de confiança que muitas vezes não conseguem enxergar em clubes ou em federações, em times ou em seleções. Cuca tem o irmão como auxiliar por onde vai, Nelsinho trabalhava com o filho até este alçar voo solo. Em geral, o fazem porque a experiência de vida lhes deixou lições. Não são raros os casos dos conflitos de treinadores com os auxiliares permanentes dos clubes, a desconfiança de que há profissionais com aspirações pelos cargos superiores. O meio do futebol é repleto de deturpações. Uma delas, é proteger-se de uma sensação de deslealdade empregando uma pessoa próxima. Nem que seja um parente.
E aqui vale pontuar algo fundamental. Nada indica que tenha sido este instinto de proteção que levou Tite a colocar Matheus na CBF. O hoje assistente da seleção se preparou para trabalhar em comissões técnicas de alto nível. Mas é esta lógica vigente no futebol que educou treinadores a entenderem tal gesto como normal, a considerarem que comissões técnicas são ambientes tão distintos de empresas públicas ou privadas a ponto de ser natural que adotem práticas distintas.
Presença do filho passou a incomodar
Tite cresceu no futebol, é um produto do meio. Habituou-se à lógica do sistema. Provavelmente, jamais considerou que a presença do filho fosse uma sinalização ruim para o meio externo. Possivelmente tenha até se surpreendido diante dos primeiros questionamentos, porque nunca imaginou que fizesse algo que merecesse contestação. De tão comum que é no futebol. Ao julgar que o filho se preparou, entendeu como natural sua incorporação ao corpo técnico do Corinthians e, agora, da seleção. E deve julgar injustos o ataque que recebe. Embora talvez seja útil refletir sobre como a sociedade interpreta o fato. O exagerado é usar o tema para questionar o caráter do técnico, muito menos para debater se Tite deve ou não permanecer no cargo, algo que nem deveria estar em discussão agora.
Outro ponto, e este não é nada surpreendente, é notar como a presença do filho de Tite passou a incomodar mais quando a seleção deixou de vencer. E, de novo, aqui não se questiona o trabalho do jornalista que questionou o treinador, afinal já abordara o tema em outras oportunidades. Mas impressiona como a reação do público ao tema mudou no pós Copa. Antes era uma curiosidade, hoje é uma acusação de nepotismo. Estamos mesmo preocupados com o nepotismo e com os bons exemplos ou estamos nos apropriando de uma fragilidade, de uma dissonância entre discurso e prática para atacar um técnico em meio a uma oscilação de desempenho da seleção? Um percentual alto das críticas vai pelo segundo caminho.
É o mesmo caso da tal “desconexão com a torcida”, pecado de que a seleção voltou a ser acusada após as vaias de Salvador. Curioso como, nas eliminatórias, o discurso era de recuperação da tal relação com o torcedor. Então, ficamos combinados assim: a seleção se conecta com a torcida quando ganha e se desconecta quando perde. Talvez seja o retrato mais honesto de nós mesmos.
Fonte: O Globo