A moda tem surfado a onda da sustentabilidade ao desenfrear o ritmo de consumo e encorajar o comércio de segunda mão. As apostas em prol do meio ambiente prometem impactar o setor, ainda que lentamente, mas já trazem perspectivas animadoras reservadas para o futuro da indústria.
O termo upcycling inicialmente esteve relacionado aos períodos de crise econômica, quando consumidores aderiram à customização para evitar gastos extras. Agora, a reutilização criativa de materiais que seriam descartados possui um significado muito maior que permeia questões de sustentabilidade, slow fashion e moda consciente.
Por meio da economia circular, que elimina o descarte e recoloca materiais de volta na cadeia, marcas dos segmentos da moda e decoração estão crescendo com propostas sustentáveis para ressignificar objetos.
De volta ao mercado
“Eu vi um óculos de madeira dos Estados Unidos, tentei comprar e não entregavam no Brasil. Como eu tinha experiência com marcenaria, resolvi fazer meu próprio óculos”. A marca Zerezes nasceu em 2012 a partir dessa inquietude de Luiz, à época estudante de design de produtos. Junto com três amigos, o carioca criou a marca com a premissa de reaproveitar madeiras descartadas e transformá-las em armações de óculos de sol.
Primeiramente, as madeiras são coletadas ou fornecidas por clientes a partir de móveis domésticos. Em seguida, vão para um polo de marcenaria, onde são processadas até virarem uma lâmina. Por fim, recebem um acabamento manual feito com lixas e resina de mamona, que é atóxica, biodegradável e de base vegetal, para garantir selagem e impermeabilização dos materiais.
“Ao longo desse processo de transformar matéria bruta em lâmina, a gente percebeu que 30% a 40% dessa madeira acabava virando serragem”, explica Luiz. Os resíduos processados com resina de mamona puderam ser aproveitados e deram origem à linha Restos, um subproduto dos óculos de madeira fabricados pela marca. Já nos modelos feitos a partir de acetato, o designer acrescenta que as chapas também são garimpadas para dar origem a um novo objeto de consumo.
A linha mais atual da marca, batizada de Deadstock, incentiva a economia circular ao reinserir no mercado centenas de óculos produzidos nos anos 1990 e comprados de uma fábrica desativada. “As lentes foram trocadas para garantir que tenham 100% de proteção UVA e UVB”, completa.
Após sete anos no mercado, Luiz estima que a marca já tenha ultrapassado os cinco mil óculos feitos a partir das madeiras reaproveitadas, fora os produtos originados de acetato e serragem. A Zerezes ainda trabalha com o prolongamento de vida útil ao receber óculos levados por clientes, que recebem um desconto na compra de novas peças.
A designer de moda Germana Lópes também viu nas madeiras descartadas uma possibilidade de prolongamento. Em 2014, a Crua Design nasceu trazendo acessórios que unem sustentabilidade e estilo. “Trabalhamos com o conceito de ressignificação de materiais, desenvolvendo produtos com materiais reutilizados e/ou inusitados. A produção segue no mesmo ritmo slow, visto que trabalhamos com técnicas artesanais e processos manuais”, explica a designer.
Ressignificar
Em média, uma pipa de kitesurf tem um ciclo de vida útil de aproximadamente 300 horas de velejo. Por outro lado, o nylon presente na pipa usada para a prática do esporte aquático leva 300 anos para se decompor na natureza. Sem saber o que fazer com seus kites (pipas, em português) em desuso, o arquiteto e velejador Alexandre Rezende criou a marca Kite Coat em 2015 com a ideia de transformar o tecido das pipas em casacos.
“Já fizemos mais de 200 pipas nesses quatro anos e meio, sendo mais de dois mil metros quadrados de nylon que não foram para o lixo e ganharam um segundo ciclo de vida”, expõe Alexandre, que toca a marca ao lado da sócia e namorada Paula Lagrotta.
Já no universo dos calçados, a Insecta Shoes acumula números surpreendentes de reciclagem: 21 mil garrafas plásticas, 2 mil metros de tecido, quase uma tonelada de algodão, mais de 1.600 quilos de papelão e 6.800 quilos de borracha já foram reciclados pela paulistana.
No mercado há cinco anos, a marca fundada por Bárbara Mattivy busca ressignificar materiais que estão no lixo. “Além do tecido do sapato ser sempre de upcycling, a sola é de borracha reciclada, a couraça e o contraforte também, a palmilha é feita com o excedente de tecido da nossa produção, e até a linha de costura é feita de garrafa PET reciclada”, conta a criadora da marca, que cresce cada vez mais no mercado do slow fashion.
Descarte é arte
O segmento da decoração também sabe como agregar as tendências sustentáveis, principalmente o upcycling. A Ignis Industrial, por exemplo, trabalha com móveis e objetos vintage e nasceu como uma segunda marca da Desmobilia, no mercado há vinte anos.
“O projeto começa sempre a partir de alguma peça garimpada, que vai ganhando outras formas quando agregada a outros componentes e peças. É como um grande quebra-cabeça que, no final, tem como resultado um objeto único e com funcionalidade distinta da peça que o originou”, conta o designer João Livoti.
Transformando descarte em arte, as peças de reúso ainda carregam histórias. A poltrona de avião da década de 1950, a mesa lateral feita com uma maleta militar alemã, a luminária com cúpula de opalina verde do início do século 20 e a mesa produzida a partir de um boneco Michelin e ferro fundido são exemplos de objetos decorativos que ganharam novos significados a partir do upcycling.
Não é preciso ir muito longe para aderir ao movimento. Na decoração, por exemplo, os pallets são ótimos exemplos de itens fáceis de encontrar e com baixo custo. A partir das estruturas de madeira, é possível explorar customizações que transformam os itens em sofás, camas, mesas e escrivaninhas.
Em seu canal no YouTube, Karla Amadori ensina algumas opções aos interessados na arte do ‘faça você mesmo’. A mais criativa delas, que acumula quase 250 mil visualizações, transforma pallets em uma escrivaninha charmosa para o escritório da youtuber.
* Estagiária sob supervisão de Charlise Morais.
Fonte: Terra Saúde