Os estudos utilizando o fármaco Semaglutida (Ozempic), lançado oficialmente no Brasil em 04 de maio deste ano, criam uma aura extraordinária de expectativas no universo daqueles que lidam com o tratamento de obesidade, mas por outro lado fornece generoso conteúdo que tem sido utilizado nos limites do sensacionalismo pelo democratizado meio internáutico e afins.
O uso de um medicamento findando a necessidade de cirurgia bariátrica é apenas uma possibilidade e no momento é mais querência que fato, conquanto a promissora droga em questão nas doses aprovadas para o tratamento do diabetes tipo 2 promova animadoras perdas ponderais, ainda estão distantes daquelas necessárias na obesidade grave.
Mas, é oportuno lembrar que até alcançarmos o crepúsculo dos anos 1980, o número de cirurgias relacionadas às úlceras gástricas ou intestinais era brutal, tempos em que reinavam os compostos com Hidróxido de Alumínio como únicas alternativas para o tratamento clínico destas patologias. Com a chegada de potentes drogas que atuam diretamente nas células produtoras do ácido gástrico a realização dessas cirurgias se tornou rara.
Entendo que nadamos a boas braçadas para a contenção farmacológica da obesidade e a Semaglutida pode ser um passo importante, e ainda que seus mecanismos de ação já fossem conhecidos, os resultados terapêuticos impressionam.
O hormônio GLP-1 e suas ações
A sensação de saciedade que permite o conforto para o término de uma refeição envolve vários eventos que modulam o ponto de encerramento da ingestão calórica. Uma substância produzida pelas células da parede intestinal durante o processo absortivo, com vida média de 2 a 3 minutos e denominada Glucagon-like peptide*-1 (GLP-1), participa do eixo mais importante na conclusão do consumo alimentar em questão.
A fisiologia pancreática patrocina a produção de insulina proporcional aos níveis glicêmicos ao tempo que suprime a produção do glucagon, hormônio hiperglicemiante também produzido neste órgão. Adicionalmente, os bons níveis deste peptídeo protegem as células produtoras de insulina, assim como provavelmente restaura a função daquelas no caminho do exaurimento.
Este hormônio possui inúmeros outros prováveis papéis em vários sistemas os quais carecem de estudos adicionais para confirmação, tal qual a suposta melhora na capacitação das micróglias, células de apoio no tecido cerebral, que na plena execução de suas funções parece nos proteger da Doença de Alzheimer. Por outro lado, o GLP-1 seguramente diminui a velocidade do esvaziamento gástrico, gerando sensação de plenitude, contribuindo em algum percentual para maior saciedade.
Os análogos do GLP-1
A indústria farmacêutica desenvolve análogos desta estrutura química há aproximadamente duas décadas e o Exenatide (Byeta) foi a primeira referência dessa classe medicamentosa, mas dada sua baixa tolerabilidade não se estabeleceu como alternativa no tratamento de diabéticos tipo 2.
A chegada da liraglutida (Victoza, Saxenda) à nossa farmacopéia no início dos anos 2010 principiou uma incomparável revolução no tratamento do paciente obeso e diabético, pois além de ótima tolerabilidade, logo teria aprovação também no tratamento de obesos não diabéticos.
Resultante de duas mudanças na sequência de aminoácidos do GLP-1 nativo a liraglutida possui meia vida de 12 a 13 horas e em dose única diária desempenha fisiologicamente o mesmo que o hormônio original, com intensidade dependente da dose em maior espaço temporal:
– Estimula a produção de insulina de acordo com os níveis glicêmicos sem risco de hipoglicemia e diminui o hiperglicemiante hormônio glucagon;
– Promove menor ingestão alimentar a partir de sua ação direta no Centro da Saciedade, enquanto este (SC), modula o Centro da Fome (CF) por sinais neuroquímicos, resultando menor desejo de comer;
– Age ainda na diminuição da velocidade do esvaziamento gástrico, no que aumenta a sensação de plenitude;
– Com provável ação em todos os sistemas nos quais o GLP-1 nativo possua influência.
Na obtenção laboratorial da Semaglutida as mudanças na sequência de aminoácidos do GLP-1 nativo foram em posições diferentes daquelas de seu antecessor, assim como associação com outro ligante (estrutura química que desprende aos poucos a substância ativa), sendo que neste contexto foi alcançado a meia vida de 165 horas, possibilitando o uso semanal do medicamento.
- A empolgação com esta droga passa longe da facilidade quanto ao uso semanal, já encontrada em outro análogo, a Dulaglutida (Trulicity), concentra-se nos resultados de melhora glicêmica e emagrecimento alcançados pela Semaglutida, que em sua dose efetiva mais baixa (0,5 mg semanal) ultrapassa os resultados obtidos com a Dulaglutida (dose máxima) 1,5 mg semanal e a Liraglutida 1,8 mg diário, dose limite preconizada nos estudos que aprovaram este fármaco para o uso no Diabetes em 2010.
O fato de aproximadamente 60% dos pacientes em uso de Semaglutida por 40 semanas, objetivando controle glicêmico, apresentar diminuição ponderal média que se aproxima dos 10% é extremamente sugestivo que tempos melhores virão também para obesos não diabéticos.
Conclusão
O pretendido novo tempo farmacológico não evitará procedimentos cirúrgicos tão brevemente, nem tão pouco resolverá as causas de sobrepeso e obesidade, mas seguramente trará muitos sorrisos de volta em incontáveis rostos.
Quem sabe ainda melhores transferências **epigenéticas forneçam proles mais resistentes aos elementos ambientais que desarranjam nossos centros reguladores e com isso estejamos consertando um pouco no futuro do que não conseguimos agora.
*(peptídeo é uma sequência de aminoácidos)
**A epigenética, Darwin e a obesidade (publicado em 17 agosto 2018)
Quem faz Letra de Médico
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Fonte: Veja