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A Champions virou a Liga da Anarquia. Mas o que explica tantas reviravoltas?



Nada como o futebol. A frase costuma ser usada sempre que nos vemos diante de uma grande virada, de uma sequência improvável de gols que muda os rumos de uma competição. E o curioso é que tem sido na Liga dos Campeões, o maior torneio de clubes do mundo, que temos dito com uma frequência bem acima do usual que não há nada como o futebol.

É fato que o torneio reúne uma elite de jogadores capazes de decidir partidas, de fazer muitos gols. Mas também, em teoria, lá estão os melhores treinadores, os melhores defensores, os melhores sistemas tanto para criar gols quanto para evitá-los. E quanto há muito em jogo, a ambição da vitória e o temor da derrota costumam se equilibrar. É inusitado que a Liga dos Campeões tenha se tornado uma liga da anarquia, no melhor dos sentidos. Acumulam-se jogos em que os times parecem capazes de fazer tantos gols quantos sejam necessários. Ainda que diante de rivais igualmente gigantes. Como se a área tivesse se tornado indefensável. Uma sensação de poderio dos ataques e fragilidade das defesas.

A temporada 2016-2017 viu o Barcelona perder em Paris  por 4 a 0 para o PSG  e aplicar 6 a 1 na volta. Chegou a três minutos do fim do tempo regulamentar precisando de três gols: fez. O mesmo torneio viu os 6 a 6 no total da eliminatória entre Manchester City e Monaco; um 10 a 2 ao final dos dois jogos entre Bayern de Munique e Arsenal; e o 6 a 3 após duas partidas e uma prorrogação para Bayern e Real Madrid.

Um ano depois, a Juventus perdeu em casa para o Real Madrid por 3 a 0, mas foi à Espanha precisando de três gols no Santiago Bernabéu: fez, mas um pênalti nos instantes  finais devolveu a vaga aos madrilenhos. No mesmo torneio, após vencer uma Roma muito menos rica e estelar por 4 a 1,  o Barcelona sucumbiu à pressão na capital italiana: com naturalidade, foi sofrendo gols até cair com um espantoso 3 a 0. Os romanos quase repetiram a loucura contra o Liverpool, de quem levaram 5 a 2 na Inglaterra antes de golearem por 4 a 1 em casa. Faltou um gol.

“Eu sou da época em que vantagens de três gols significavam alguma coisa?

Jonathan Wilson
Jornalista, colaborador do 'Guardian' e autor de 'A pirâmide invertida'

A atual edição produziu duas semifinais insanas com reviravoltas protagonizadas por Liverpool e Tottenham: após quatro jogos, as semifinais somaram 13 gols. Antes disso, o Ajax, vítima do Tottenham, já fizera 4 a 1 no Real Madrid na Espanha. Nem o Atlético de Madrid de Diego Simeone, talvez o maior especialista em sistemas defensivos do planeta, escapou: a vantagem de 2 a 0  sobre a Juventus ruiu nos 3 a 0 do jogo de volta. Nas quartas de final, City e Tottenham trocaram golpes e gols na partida de volta: 3 a 2 City no primeiro tempo, 3 a 3 ao apito final, sem contar o gol de Sterling anulado por centímetros nos acréscimos.

Pode ser uma coincidência, mas pode também ser um fenômeno do jogo moderno. O que explica tantos jogos envolvendo times concebidos para serem perfeitos, de elite, fortes técnica e mentalmente, tão vulneráveis a reviravoltas? Talvez haja mais hipóteses do que certezas, é preciso assumir.

 

(O vídeo acima é um conteúdo produzido por Dugout)

Uma delas é a realidade das ligas nacionais condicionando comportamentos dos gigantes globais. Times que passam o ano todo atacando, semana após semana  como protagonistas de jogos contra rivais bem menos poderosos, defensores jogando campo adversário adentro, longe da própria área num ataque contra defesa. Como se o desnivelamento de muitos torneios nacionais tivesse moldado equipes desacostumadas a sofrer, defender a área, rebater bolas seguidas. Times prontos a sucumbir  sob pressão. Algo como a chamada “bulimia de vitórias”, termo desenvolvido por Manoel Estiarte, o maior jogador de pólo aquático do mundo e auxiliar técnico de Pep Guardiola. Para ele, as grandes equipes deste mundo concentrador de riquezas habituaram-se a uma rotina de triunfos. A adversidade as tira de tal modo da zona de conforto que tendem a colapsar.

É possível falar da qualidade dos atacantes, e não é novidade que um Cristiano Ronaldo ou um Messi podem construir gols quase que por inércia. Vivemos uma era de atacantes de exceção, que transformam o fora de série em rotina. E todos os maiores atacantes do mundo estão na Liga dos Campeões.

O jogo mudou nos últimos anos, de uma era de conservadorismo para o surgimento de sistemas mais ofensivos. E o padrão do jogar bem mudou. O que talvez conduza a outro fator.  Grandes marcas perseguem um posicionamento, um  lugar de destaque num  mercado multibilionário. Nele, a disputa por interesse global é movida a astros e a um jogo atraente. Para tanto, futebol ofensivo se tornou uma fórmula perseguida. Teria ele sido construído ao preço da perda da resiliência?

Fato é que a final inglesa da Liga dos Campeões representa, enfim, a imposição do campeonato nacional mais rico e menos desnivelado da elite europeia. A necessidade de ser competitivo semana após semana na  Premier League poderia  até ser usada como razão do sucesso inglês. Afinal, habituam-se a competir e sofrer. Mas houve tempos em que esta competitividade doméstica foi tida como vilã, causa de um suposto desgaste excessivo que teria conduzido a seguidos fracassos continentais. O futebol oferece mais hipóteses do que certezas.

Fonte: O Globo


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