No final de 2018, o Secretário de Estado do Reino Unido lançou um aviso de saúde urgente enfatizando que a ameaça para as crianças decorrentes do tempo de tela em redes sociais seria similar àquela proveniente do açúcar para a saúde física. A questão do açúcar deixo para os meus colegas pediatras e endocrinologistas. Em 2017, já havia me debruçado sobre o tema, mas naquela época sobre o viés de o quanto jogos como o da Baleia Azul, muito em voga na época, poderiam promover reais epidemias de suicídio em adolescentes.
Já naquela matéria, alertava que inexiste uma resposta real para uma das perguntas mais frequentes em consultórios de pediatras, médicos de família, terapeutas, psicólogos ou psiquiatras da infância e adolescência: “Quanto tempo meu filho ou minha filha pode jogar no computador sem que isso lhe cause mal ou afete sua saúde física e mental??
No últimos dois anos, o uso de smartphones ficou mais ubíquo do que a existência de água encanada no mundo e cerca de 95% dos jovens no Reino Unido tem um desses aparelhos. Frente a novos estudos científicos publicados no ano passado e início de 2019 que têm provocado posições como a mencionada acima, resolvi revisitar o tema agora sobre uma ótica mais abrangente: o tempo total de tela independente do conteúdo.
Ou seja, há uma relação linear entre o tempo de tela e o bem-estar psicológico em crianças e adolescentes?
Possíveis associações
Para aceitarmos a associação como verdadeira e relevante para nossa discussão, colocamos dois parâmetros iniciais. Havendo associação, o estudo indica a direção da relação? Esclarecendo para o leitor, se as crianças com Depressão ou Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade passarem mais tempo em tela do que crianças sem essas doenças, a associação entre tempo de tela e saúde mental pode ter a direção inversa, ou seja, a doença mental levar a mais tempo de tela.
Além disso, há evidência de que a associação é carregada por outro fator de confusão comum ao campo? Famílias disfuncionais tendem a deixar as crianças mais tempo na frente da tela e famílias disfuncionais tendem a ter filhos com problemas de saúde mental mais frequentemente. Logo, uma associação entre tempo de tela e saúde mental deve ser controlada para funcionamento familiar.
Tempo de tela e cérebro
Vamos as evidências publicadas desde 2018. O primeiro deles é um mega estudo patrocinado por inúmeras agências de pesquisa norte-americanas com um verba de 300 milhões de dólares para acompanhar o desenvolvimento de cerca de 12.000 jovens a partir dos 9-10 anos em 21 centros de pesquisa nos Estados Unidos, o chamado ABCD study. O estudo usa neuroimagem para acompanhar o desenvolvimento cerebral ao longo da adolescência. Um dos inúmeros objetivos é avaliar como o tempo de tela impacta na saúde mental e desenvolvimento cerebral ao longo da adolescência.
Os primeiros resultados com 4.500 participantes foram apresentados, com muito barulho, no celebrado programa da CBS “60 minutes?. Eles mostraram alterações significativas no desenvolvimento cerebral nas crianças com mais de sete horas de tempo de tela por dia. Aquelas com mais do que 2 horas por dia tinham menores escores em testes de linguagem e cognição.
Outra investigação, publicada em janeiro deste ano a partir dos dados do ABCD study, demonstrou que o tempo de tela por dia se associava predominantemente a quatro padrões específicos de conexão estrutural entre regiões cerebrais, que por sua vez se associavam a problemas de comportamento nos jovens avaliados.
Por fim, um estudo com uma amostra representativa de mais de 40.000l crianças e adolescentes de 2 a 17 anos nos Estados Unidos, avaliando o tempo total diário de tela e várias medidas de bem-estar psicológico, mostrou que após uma hora de uso, há uma associação clara entre o aumento de horas de exposição a tela e menor bem- estar.
Nenhum desses estudos, respondeu os dois parâmetros iniciais levantados. Os três deixam claro que não medem a direção da associação e que deixaram de avaliar fatores de confusão importantes.
Tempo de tela e bem-estar psicológico
Nesse contexto, dois outros estudos foram publicados em 2019. O primeiro foi publicado na revista Nature Human Behavior com direito a editorial na revista mãe ? Nature. Nele os autores exploram a associação de tempo total de tela e bem-estar psicológico em três bancos de dados gigantes e independentes, incluindo cerca de 355.000 adolescentes dos Estados Unidos e Reino Unido.
Usando técnicas estatísticas modernas e conservadoras, os autores tentam dimensionar o real tamanho da associação, mesmo não entrando na discussão da direção da associação. Eles confirmam a associação, com um pequeno detalhe. Ela explica 0.4% da variabilidade dos escores de bem-estar psicológico, ou seja, 99,6% da variabilidade é explicada por outros fatores. Logo, um tamanho de efeito que para poucos indicaria necessidade de políticas de saúde pública sobre a questão, ou que, na sua vida cotidiana, não faria você infernizar o seu filho sobre o uso que ele faz do smartphone.
O outro estudo do mesmo grupo de autores com dois bancos de dados diferentes e um sobreposto é pior ainda para os demonizadores do tempo em que os adolescentes passam na frente das telas. Além de confirmar os achados do estudo anterior, eles encontram também um pífio efeito para o tempo de tela 30 minutos e uma hora antes de dormir. Nesse estudo, os autores usam tempo de tela registrado em diários aumentando ainda mais a confiabilidade da informação.
Vale lembrar o leitor que nada é definitivo por enquanto nessa área e que ausência de evidência não é comprovação de ausência de associação. Além do mais, alguns autores discutem se o percentual da variabilidade do bem estar psicológico é uma boa medida do efeito do tempo de tela. Futuros dados longitudinais como os que virão de grandes estudos como o ABCD study são fundamentais. Enquanto isso, como bem lembra o editorial da Nature, o tempo de tela pode ser tão prejudicial para o bem-estar psicológico como comer batata e menos do que usar óculos, ambas associações também testadas no artigo da Nature Human Behavior!
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Quem faz Letra de Médico
Adilson Costa, dermatologista
Adriana Vilarinho, dermatologista
Ana Claudia Arantes, geriatra
Antonio Carlos do Nascimento, endocrinologista
Antônio Frasson, mastologista
Arthur Cukiert, neurologista
Ben-Hur Ferraz Neto, cirurgião
Bernardo Garicochea, oncologista
Claudia Cozer Kalil, endocrinologista
Claudio Lottenberg, oftalmologista
Daniel Magnoni, nutrólogo
David Uip, infectologista
Edson Borges, especialista em reprodução assistida
Eduardo Rauen, nutrólogo
Fernando Maluf, oncologista
Freddy Eliaschewitz, endocrinologista
Jardis Volpi, dermatologista
José Alexandre Crippa, psiquiatra
Ludhmila Hajjar, intensivista
Luiz Rohde, psiquiatra
Luiz Kowalski, oncologista
Marcus Vinicius Bolivar Malachias, cardiologista
Marianne Pinotti, ginecologista
Mauro Fisberg, pediatra
Roberto Kalil, cardiologista
Ronaldo Laranjeira, psiquiatra
Salmo Raskin, geneticista
Sergio Podgaec, ginecologista
Fonte: Veja