Grande parte do nosso planeta vive hoje um tempo de relativa paz e prosperidade.
Estatísticas da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e de vários governos ao redor do mundo indicam que em vários países a pobreza tem diminuído e a expectativa de vida tem aumentado de forma consistente.
A maioria das pessoas vivendo em países em desenvolvimento – como o Brasil – tem hoje uma vida mais rica e mais segura que em qualquer outro período histórico, embora muito ainda precise ser feito.
Se é assim, por que é que as pessoas parecem estar sempre com raiva?
Brigas de trânsito, comentários agressivos em redes sociais e até políticos trocando sopapos são coisas cotidianas. Um visitante de um planeta distante poderia achar que os humanos vivem em estado de fúria constante.
Oliver Burkeman é um escritor e jornalista britânico que costuma escrever sobre a busca pela felicidade. Mas mais recentemente, Burkeman resolveu explorar o sentimento de raiva.
Mas por que nos sentimos com raiva? Quais são os gatilhos mais frequentes? E, talvez mais importante, é uma coisa necessariamente ruim?
1. Por que a evolução nos dotou da capacidade de sentir raiva?
Quais podem ter sido os motivos que levaram nossos ancestrais remotos a sentir raiva uns dos outros?
“A raiva na verdade é um sistema muito sofisticado”, diz Aaron Sell, professor de psicologia e criminologia na Universidade Heidelberg, no Estado de Ohio (EUA).
“Para colocar em termos dramáticos, é um sistema de controle mental. É uma forma de entrar na mente de outra pessoa e forçá-la a te valorizar mais. É uma forma de resolver conflitos com outros mudando a percepção deles”, diz.
Sell diz que uma parte importante deste “controle mental” vem da expressão facial que fazemos quando estamos com raiva: franzir a testa, projetar a mandíbula e alargar as narinas.
“Cada uma dessas mudanças provocadas pela raiva faz você parecer fisicamente mais forte”, diz ele.
De acordo com o professor, a ciência hoje acredita que essa “cara de raiva” é um comportamento inato, e não aprendido. Entre outros motivos, pelo fato de que crianças cegas de nascença fazem a mesma “cara de raiva” que qualquer outra pessoa.
Então, como é que uma boa “cara raivosa” representou uma vantagem para os nossos ancestrais?
2. A teoria da ‘recalibração’
Você talvez esteja pensando a esta altura que os humanos primitivos que ficavam com raiva e entravam em brigas acabaram sobrevivendo e deixando descendentes, ao contrário dos que não faziam isso.
Mas não é tão simples.
“O que aconteceu”, diz o professor Aaron Sell, “é que as pessoas que tinham um tipo particular de raiva se reproduziram mais que aquelas que não tinham”.
Estas pessoas barganhavam para obter um tratamento melhor e prevalecer em conflitos de interesse.
“No passado, pessoas que não tinham raiva eram ‘atropeladas'”, diz. Eram roubados e passados para trás pelos seus companheiros, “e como resultado, acabavam perecendo”.
Os sobreviventes eram aqueles que ameaçavam parar de cooperar, lembrando rapidamente aos demais no grupo de todas as coisas boas que já tinham feito – “recalibrando” desta forma o comportamento dos seus colegas hominídeos e fazendo com que eles agissem de forma mais grata. Isto resultava num tratamento melhor.
É desta forma que a raiva deu a estes humanos uma vantagem evolutiva, diz Sell.
3. O que acontece com os nossos corpos quando ficamos com raiva?
Para entender a raiva, precisamos pensar sobre o que ela realmente faz conosco do ponto de vista psicológico. Como ela nos faz agir e pensar – ou, para ser exato, não pensar.
O professor Ryan Martin é coordenador do programa de psicologia da Universidade do Wisconsin em Green Bay, nos EUA. É também um pesquisador da raiva e apresenta um podcast sobre o tema chamado All the Rage (“Toda a Fúria”, em tradução livre).
“Quando você está com raiva, o seu sistema nervoso simpático – o sistema conhecido como ‘lutar ou correr’ – assume o controle”, diz. “Seu ritmo de batimentos cardíacos aumenta, sua respiração fica mais pesada, você começa a suar e o seu sistema digestivo fica mais devagar”, diz.
Esta reação fisiológica do corpo tem como objetivo criar energia para que você possa responder a uma ameaça, seja ela real ou imaginada.
O cérebro também faz sua parte.
“Também sabemos que quando as pessoas estão vivendo sentimentos intensos, seus pensamentos tendem a ser um pouco mais compartimentados”, diz Martin. “Eles ficam mais focados na sobrevivência”, ou em “perseguir a vingança”.
Isto também é um comportamento selecionado pela evolução – não é bom ficar divagando sobre outros assuntos diante de uma situação extrema.
4. Como a vida moderna pode alimentar nossa raiva?
Aparentemente, a maioria das pessoas – especialmente nos países ricos – tem menos motivos para se preocupar que os seus ancestrais. Então, por que a vida moderna parece nos deixar com tanta raiva?
É simples, diz o professor Martin. “As pessoas estão mais ocupadas e aumentaram as demandas em suas vidas. Então, a sensação de ser ‘atrasado’ por outros parece muito pior agora”, diz.
Quando você precisa cumprir tarefas “chatas”, como encarar a fila do supermercado, ou resolver uma pendência burocrática pelo telefone, é provável que você fique com raiva muito rápido – pois não há tempo a desperdiçar.
São as coisas que “poderiam ser evitadas, e que nos fazem sentir impotentes” que costumam nos deixar com raiva, diz Martin.
A forma como evoluímos para sentir raiva e para reagir “às vezes não funciona tão bem no mundo atual”, diz ele.
5. A raiva é mais fácil de controlar do que nós imaginamos?
Obviamente, atacar ou machucar a pessoa da qual você tem raiva não ajuda, nem é produtivo. Por isso, é preciso encontrar outras formas de canalizar a nossa raiva.
Nós temos mais controle sobre isso do que imaginamos, diz Maya Tamir, professora de psicologia da Universidade Hebraica de Jerusalém.
Emoções não são necessariamente resultado da evolução, diz ela. “Elas são também ferramentas aprendidas, que nós desenvolvemos, e que nós somos capazes de mudar e de cultivar de formas criativas”, diz.
A pesquisa dela mostrou que a raiva nem sempre precisa servir de gatilho para uma agressão.
“Se as emoções são (também) construídas e aprendidas”, além de herdadas, então “emoções como a raiva não necessariamente terão um efeito fixo sobre o nosso comportamento”.
“Nós não somos marionetes dos nossos sentimentos”, diz Maya. “A raiva não nos torna irremediavelmente agressivos.”
6. Usando a raiva para o bem
A raiva nos faz ver tudo em preto e branco: pode nos tornar fisicamente agressivos, verbalmente agressivos ou até mesmo nos deixar agressivos no Twitter e no Facebook.
Se pessoas poderosas sentem raiva, as consequências podem ser devastadoras – até mesmo a guerra.
Mas, segundo os psicólogos, ela também pode focar a nossa mente, e nos dar energia para agir quando fazem algo de errado conosco.
Mark Vernon, filósofo e psicoterapeuta, diz que na tradição filosófica aristotélica e platônica existia o conceito de “raiva justa”.
Esses filósofos gregos antigos achavam que havia um lado bom na raiva quando a pessoa, mesmo irada, conseguia direcionar a energia para algo produtivo.
Portanto, a ira “pode inspirar alguém a fazer algo com coragem, ou pode inspirar alguém a formular um bom argumento em favor daquilo que é justo”, diz.
Então, concluímos assim: a raiva não é uma coisa ruim por si mesma.
Apenas precisamos exercitar o controle sobre esta poderosa e desajeitada emoção, e direcioná-la de uma forma efetiva. Desta forma, não ficaremos presos numa espiral infinita de ódio e agressão.
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Fonte: Terra Saúde