Em uma pequena casa na Mooca, bairro de classe média na zona leste de São Paulo, cinco crianças entre 2 e 6 anos se reúnem em torno da cuidadora, que lhes dá pistas para uma caça ao tesouro.
“Que desenho é esse? Será que encontramos algum objeto parecido pela casa?”, pergunta a cuidadora, enquanto as crianças saem em busca de petecas e bandeirinhas pelo local.
As crianças passam ali meio período do seu dia, enquanto os pais trabalham; algumas ficam o dia todo.
A 7.500 quilômetros de distância, na cidade de Johannesburgo, na África do Sul, uma cena parecida: um grupo de crianças de idade semelhante é entretido em um espaço recreativo adaptado por uma jovem cuidadora em Kliptown, um dos distritos mais pobres de Soweto, a maior favela da cidade. Entre as atividades do dia da visita da reportagem, as crianças africanas se divertiam cantando e dançando músicas religiosas e encaixando as peças de brinquedos de montar feitos especialmente para desenvolver a capacidade motora dos pequenos.
Não se trata, porém, de creches pagas pelo governo ou de ONGs, mas sim de duas versões de um negócio social: na África do Sul, o projeto SmartStart atende atualmente 36 mil crianças, em 3.870 comunidades carentes do país. No Brasil, o Cantinho do Brincar, que é inspirado no modelo do SmartStart, ainda está em fase embrionária, mas almeja abrir mais unidades onde possa formar cuidadoras – que por sua vez possam abrir as próprias franquias.
O objetivo principal é responder a demandas comuns aos dois países, e a boa parte do mundo: mitigar a dificuldade de acesso a creches e prover oportunidades a crianças em uma fase crucial de seu desenvolvimento cerebral – a primeira infância, período entre o nascimento e os 6 anos de idade -, quando os estímulos ou a ausência deles têm um forte impacto na capacidade delas de aprender habilidades sociais e cognitivas.
Cálculos do centro de desenvolvimento infantil da Universidade Harvard estimam que cada dólar investido na primeira infância de crianças carentes pode levar à economia posterior de US$ 4 a US$ 9, pelo impacto na produtividade e no bem-estar delas quando adultas.
A despeito disso, dados divulgados pelo Unicef em 9 de abril apontam que mais de 175 milhões de crianças no mundo – não estão matriculadas na educação infantil, “perdendo uma oportunidade de investimento crucial e sofrendo profundas desigualdades desde o início da vida”.
No Brasil, segundo dados da Pnad Contínua 2017 compilados pelo Unicef, 32,7% das crianças de até 3 anos frequentavam a creche e 91,7% das crianças de 4 a 5 anos estavam na pré-escola (índice alto, mas insuficiente para o Brasil cumprir a meta no Plano Nacional de Educação, que prevê a universalização do acesso à pré-escola).
“Se a criança não receber estímulos adequados durante a primeira infância ou se sofrer estresse prolongado, por exemplo, ela poderá ter alterações na formação dos seus circuitos neuronais e sofrer vários problemas de saúde no futuro, tais como doenças cardiovasculares, ansiedade e depressão”, explica o coordenador do Centro de Políticas Públicas do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), Naercio Menezes Filho.
Os cuidados adequados a bebês e crianças contribuem para diminuir a evasão escolar elevar o nível de educação, elevar a renda média e reduzir a violência, de acordo com o livro Da ciência à prática – Os programas de apoio ao desenvolvimento infantil na América Latina, que faz diagnóstico dos programas de primeira infância no continente.
“Garantir que a criança tenha acesso à educação e estimulantes nos primeiros anos de vida é fundamental para que que as crianças tenham um futuro melhor que o dos pais, mesmo quando criadas em condições de pobreza”, diz Menezes. Quanto mais estímulos, como os que ocorrem por meio da educação infantil, maiores as chances de que no futuro as crianças tenham um bom desempenho acadêmico, autocontrole emocional e capacidade de solucionar problemas. Além disso, alguns estudos apontam que esse desenvolvimento positivo reduz as chances de as mesmas crianças, no futuro, envolverem-se em atividades violentas ou criminais.
O desafio de cuidar das crianças no Brasil e na África
Tanto na África do Sul como no Brasil, o déficit de cuidados à primeira infância é um problema nacional. Lá, estima-se que 1 milhão de crianças de 3 a 5 anos não tenham acesso a programas de aprendizagem na primeira infância.
Em um país com alta incidência de mortes por Aids e índices de pobreza extrema ainda maiores que os brasileiros, das 5,3 milhões de crianças sul-africanas com menos de cinco anos em 2012, apenas um terço vivia com ambos os pais.
A grande maioria, 79%, morava só com a mãe, em geral sobrecarregada com o sustento da família e os cuidados domésticos. Um dos objetivos do projeto SmartStart é justamente garantir que os estímulos na primeira infância deem às crianças mais ferramentas para, no futuro, escaparem da perpetuação da pobreza extrema.
No Brasil, embora a cobertura de creches venha crescendo, faltam mais vagas justamente nas regiões mais pobres. Há, também, problemas na qualificação: só um terço dos docentes dessas instituições tinha ensino superior completo em 2017. O que traz à tona outra questão: para o bom desenvolvimento cerebral, não basta que as crianças estejam supervisionadas, mas sim que estejam em ambientes seguros e recebendo estímulos positivos e adequados à faixa etária.
Em 2016, o governo federal anunciou o programa Criança Feliz, que ensina aos pais de crianças carentes ideias caseiras de brincadeiras e atividades estimulantes, sob supervisão de assistentes sociais. O programa trouxe avanços, segundo especialistas em primeira infância, mas em escala longe do suficiente: atendeu por enquanto 400 mil crianças, de uma meta inicial de 4 milhões.
Treinamento para mulheres e opção de renda
Na África do Sul, o SmartStart nasceu em 2015, com investimento de fundos e ONGs internacionais até virar franquia, para cuidar de crianças de baixa renda ao mesmo tempo em que dá opções de renda para cuidadores de crianças – que são, em sua maioria, mulheres. As cuidadoras, por sua vez, recebem da franqueadora um treinamento e um kit de brinquedos e recursos para serem usados nas aulas. A meta é chegar a 1 milhão de crianças atendidas até 2026.
Algumas crianças praticamente moram em algumas das unidades, nos casos em que seus pais não têm condições de oferecer-lhes cuidados básicos. As mensalidades do SmartStart variam entre 20 e 600 rands (R$ 5 a R$ 150) por mês, a depender do valor aquisitivo médio de cada comunidade – Soweto, por exemplo, é uma das comunidades mais pobres do mundo, e tem áreas onde o índice de desemprego supera os 30%.
A ideia de adaptar o projeto à realidade brasileira surgiu depois que um grupo de brasileiras visitou a iniciativa em 2017. Renata Citron fez um projeto-piloto na favela de Paraisópolis, em São Paulo, até estabelecer-se na Mooca, dentro de uma incubadora da Universidade São Judas. Agora, planeja inaugurar em 2019 unidades em regiões pobres da zona sul paulistana com alto deficit de creches, como Jardim São Luís, Campo Limpo e Capão Redondo, onde estão sendo treinadas novas cuidadoras (todos os envolvidos no programa são mulheres).
O treinamento no Brasil, que totaliza 40 horas, é semelhante ao sul-africano: as cuidadoras aprendem noções de desenvolvimento cognitivo e socioemocional infantil e formas de estimulá-lo – em linguagem, criatividade, consciência corporal e coordenação motora, por exemplo – com situações de aprendizado para as crianças, jogos, brincadeiras e estratégias para lidar com momentos de conflito.
“Formamos nossas primeiras facilitadoras, que vão montar suas próprias unidades na periferia e replicar a metodologia em suas próprias casas”, explica Citron, uma das fundadoras do Cantinho do Brincar.
Há também ensinamentos básicos sobre como as cuidadoras podem transformar o espaço recreativo em uma fonte de renda, com noções sobre como manter o fluxo de caixa de seu negócio, calcular o retorno do investimento e estruturar uma rotina diária.
A meta é que cada facilitadora formada no curso seja capaz de montar sua própria pequena franquia, em locais adaptados – suas casas, salas dentro de igrejas ou espaços comerciais em comunidades carentes, a mensalidades a partir de R$ 200.
O Cantinho do Brincar, por enquanto, é sustentado pelas próprias sócias, com a ajuda de um programa de aceleração de empresas americano. O objetivo é que, havendo a multiplicação de franquias, o negócio se torne autossustentável.
Aqui no Brasil, as franquias devem começar focando em crianças de pais de baixa renda mas com algum poder aquisitivo, e não em situação de pobreza extrema, como em Johannesburgo.
‘Mães crecheiras’
Embora não seja de consenso entre especialistas e esteja em um limbo regulatório no Brasil, a ideia do SmartStart e do Cantinho do Brincar ajuda a fomentar o debate em torno de como universalizar a oferta do estímulo tão crucial nos primeiros anos de vida, para crianças talvez não consigam vagas em creches públicas ou tenham acesso a algum tipo de cuidado devidamente capacitado – seja por pais, parentes, vizinhos ou babás.
Em comunidades carentes, existe informalmente a figura das mães crecheiras, mulheres que, geralmente em troca de pequenas mensalidades, cuidam dos filhos de vizinhas enquanto estas estão no trabalho. Não há estatísticas a respeito dessa atividade, mas ela é bastante comum, segundo grupos que pesquisam a primeira infância.
O problema é que, além de a atividade não estar regulamentada e ser praticamente ignorada pelas autoridades, essas cuidadoras – embora frequentemente amorosas e carinhosas – têm pouco conhecimento a respeito da importância do desenvolvimento dessa fase da criança e como estimulá-lo.
“Passamos seis meses acompanhando algumas (dessas mães crecheiras) nas comunidades de Paraisópolis e víamos que muitas vezes eram mães ou senhoras pouco preparadas para dar estímulos às crianças. Elas enxergavam o trabalho mais como um quebra-galho do que uma profissão”, diz Citron, do Cantinho do Brincar. “Víamos as crianças na frente da TV ou de uma massinha, mas sem nenhuma proposta de o que fazer com a massinha, nenhuma atividade intencional (para desenvolver habilidades).”
Dentro desse contexto, Citron diz que a ideia é “empoderar pessoas” com aptidão para o cuidado infantil e com espaço para criar uma pequena creche, dando-lhes capacitação em primeira infância e em gestão de um pequeno negócio.
Debate sobre qualidade
Iniciativas do tipo são alvo de debate entre pessoas ligadas à educação de primeira infância. Para alguns, soluções que não necessariamente envolvam pedagogos e que não tenham a supervisão estatal podem representar retrocessos em uma área que só recentemente ganhou a atenção devida e deixou de ser vista meramente como assistência social.
“Como a educação infantil (do zero aos 6 anos) é parte da educação básica e uma etapa de formação precedida de um projeto político-pedagógico, tem que ser atendida por pedagogos”, opina à BBC News Brasil Maria Izabel Noronha, presidente da Apeoesp, o sindicato dos professores do Estado de São Paulo.
“Por ser uma fase muito importante do desenvolvimento infantil, não pode ser uma etapa apenas recreacionista – exige a pedagogia e a ciência da educação.”
Mas, para Daniel Santos, pesquisador em educação infantil da USP Ribeirão Preto, não necessariamente a formação em Pedagogia garante a atenção adequada aos primeiros anos de vida da criança. “Até porque o ensino de Pedagogia no Brasil não dá muita atenção a isso (desenvolvimento na primeira infância)”, diz à BBC News Brasil.
Tanto que, diz ele, a qualidade das creches brasileiras, públicas e privadas, ainda é “heterogênea”.
“Muitas creches avançaram, mas em média ainda há muitas ruins, e há evidências de que uma creche ruim pode ser pior para uma criança”, afirma.
“Acho que é uma corrida entre a qualidade da creche e a qualidade das alternativas. Isso não é um consenso, mas pode ser que, em alguns contextos, a alternativa (no ambiente domiciliar) seja melhor, se houver treinamento e um ambiente seguro para as crianças.”
Ao mesmo tempo, Santos destaca que os desafios das soluções alternativas como mães crecheiras, SmartStart ou Cantinho do Brincar são, além de encontrar um equilíbrio financeiro, garantir que haja algum marco regulatório, com monitoramento da atividade das cuidadoras e formas de evitar más práticas.
Experiências internacionais
Outros países que também enfrentam déficit de vagas em creche acabaram adotando soluções caseiras, mas com algum nível de supervisão do Estado.
No Canadá, por exemplo, creches caseiras podem obter licenças do governo para contratar cuidadores de crianças na idade pré-escolar, sendo submetidas a avaliações prévias e posteriores por agentes estatais.
Há soluções semelhantes em países como Estados Unidos e França.
Na Colômbia, os chamados Hogares (Lares) Comunitários têm agentes educativos que, em suas casas, atendem entre 12 e 14 crianças de até cinco anos, com apoio de uma equipe multidisciplinar do governo.
Na África do Sul, porta-vozes do SmartStart afirmam que a cada franquia são designados um supervisor e um clube, com reuniões mensais. “Também renovamos sua licença anualmente, com base na qualidade (do serviço) e outros critérios”, diz a organização por e-mail à BBC News Brasil.
Lá, o trabalho no cuidado com crianças acaba sendo uma boia de salvação para as próprias cuidadoras, também em situação de pobreza. “Meus pais não são financeiramente estáveis, então eles me falaram para vir (trabalhar) aqui”, conta à reportagem a jovem Melissa, de 18 anos, que dá aulas para as crianças no Little Rose Center, unidade do SmartStart que atende 140 crianças em Soweto.
Renata Citron, do Cantinho do Brincar, afirma que sua ideia é oferecer soluções para regiões e comunidades do Brasil onde não haja vagas ou mesmo capacidade para receber uma creche, mas evitando a informalidade que caracteriza, por exemplo, a atuação das mães crecheiras brasileiras.
“Hoje, é um tipo de negócio infelizmente ignorado pelo poder público como uma solução”, diz.
*Vídeo: filmagem e edição de Rafael Barifouse
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Fonte: Terra Saúde