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A impressionante vida secreta do meu filho gamer com doença degenerativa



Robert e Trude lamentavam a vida solitária do filho em uma cadeira de rodas. Mas quando Mats morreu, descobriram que pessoas de toda a Europa acenderam velas em sua memória.

Esta história foi publicada originalmente em norueguês pela NRK, emissora pública de rádio e televisão da Noruega.

“Nós éramos muito conservadores. Não queríamos que Mats virasse a noite acordado, e assim por diante.”

Sentado em um café perto do escritório onde trabalha, na Prefeitura da capital norueguesa, Oslo, Robert Steen, de 56 anos, fala sobre o filho.

“Fazendo uma retrospectiva, acho que deveríamos ter nos interessado mais pelo mundo dos games, de que ele tanto gostava.

“Ao não fazer isso, perdemos uma oportunidade que não sabíamos que tínhamos”, completa.

O encontro com os ‘desconhecidos’

Quatro anos antes, Robert estava ao lado do caixão de Mats na nova capela do cemitério Vestre Gravlund, em Oslo, fazendo um discurso em homenagem ao filho.

Entre os que estavam sentados nas cadeiras azuis da capela ouvindo o discurso, em sua maioria parentes e funcionários do serviço de saúde próximos a Mats, havia um grupo que a família não conhecia.

Apenas Robert havia estado com eles. E só uma vez, na noite anterior.

Considerando que nos últimos anos de vida Mats quase não saía de seu quarto, no porão da casa dos pais, era estranho que desconhecidos da família estivessem presentes em seu funeral

Mais estranho ainda era o fato de que o próprio Mats, que jazia naquele caixão branco, também nunca havia encontrado com aquelas pessoas frente a frente

Antes de sua morte, na verdade, aquele grupo desolado não se relacionava com ele, como Mats. Eles o viam como Ibelin: nobre de nascença, detetive e sedutor

Muitos vieram de longe, outros de perto, e choraram pelo grande amigo que haviam perdido.

Mais tarde no velório, um deles discursaria e contaria aos presentes que, naquele momento, em toda a Europa, pessoas acendiam velas para Mats, lembrando-se dele com pesar e amor

Expectativa de vida

Estava escrito nas estrelas, codificado em seu DNA

O Mats que saracoteava com uma coroa na cabeça no seu aniversário de quatro anos, em julho de 1993, dentro de quatro anos ficaria preso a uma cadeira de rodas para nunca mais se levantar.

Robert e Trude tinham recebido a notícia em maio. Em uma pequena sala do enorme prédio de tijolos que abriga o Hospital Ullevål, o casal descobriu por que o filho caía e se machucava com tanta frequência. Por que despencava dos balanços. Por que não subia a escada do escorrega na creche, embora adorasse escorregar. Por que se apoiava nos joelhos como um velho quando estava sentado e precisava se levantar. Por que não corria com as outras crianças

Os médicos contaram a Robert e Trude que Mats sofria de Distrofia Muscular de Duchenne, uma doença rara que causa degeneração muscular em meninos. Os genes de Mats tinham um erro de codificação que impediria o desenvolvimento normal de seus músculos. E que, gradativamente, os destruiria.

“Depois que colocamos Mats na cama naquela noite, ligamos para o médico. Tínhamos permissão para fazer isso. ‘Liguem a qualquer hora se precisarem de mais informações'”, diz Robert.

Com Trude sentada ao seu lado, ele lembra que, depois de meia hora de conversa, conseguiu encontrar um pequeno conforto:

“Eu falei para o médico: ‘Mas pelo menos ele não vai morrer disso!’ O médico ficou em silêncio do outro lado da linha por um momento. Depois, disse: ‘Não, mas nossa experiência mostra que esses pacientes raramente vivem até depois dos 20 anos’.

Robert faz uma pausa

“Ele conseguiu chegar aos 25”, completa

Naquela noite de maio de 1993, na casa geminada em que moravam em Ostensjo, a sudeste de Oslo, o casal tentava assimilar todas as informações, enquanto a ideia de futuro – promessas vagas de algo bom – se transformava em uma ameaça.

Mats não teria “uma vida normal”. Ele não seria capaz de praticar esportes. Não sairia e conheceria garotas. Não experimentaria o mundo.

 

Ele morreria jovem, sem ter vivido uma vida plena.

Robert e Trude acreditavam que o filho seria tirado deles sem deixar sua marca no mundo.

Mas estavam completamente enganados.

Como criar uma identidade do zero

Se o nosso DNA mapeia nossas vidas antes mesmo de nascermos, como podemos escolher quem queremos ser?

Mats encontrou uma forma e se reinventou.

Na virada do milênio, a família Steen se mudou para uma casa adaptada para cadeira de rodas em Langhus, ao sul de Oslo.

Embora Mats pudesse jogar Gameboy durante o recreio na escola, nem mesmo o Super Mario conseguiria afastar a sensação de ser diferente. Ele estava em uma cadeira de rodas, tinha um assistente com ele em todos os lugares.

Os pais se perguntavam o que Mats gostaria de fazer no tempo livre, quando os colegas de turma jogavam futebol e zanzavam de um lado para o outro

Jogar games online, talvez? Robert deu ao filho a senha do computador da família – e um mundo novo se abriu para o menino de 11 anos.

“Nos últimos dez anos de vida, Mats jogou entre 15 mil e 20 mil horas”, estimou Robert em seu discurso. “Isso equivale a mais de dez anos de um emprego em tempo integral.”

Mas o jogo também era motivo de atrito familiar.

“Quando o acompanhante noturno chegava, às 22h, Mats precisava estar na cama”, diz o pai. “A função dele era monitorar se Mats estava deitado, não colocá-lo na cama. Mats protestou, é claro, mas contra a vontade concordou em ir dormir cedo.”

 

Mats tinha se tornado um gamer, e os gamers não vão para a cama às dez da noite.

Mas quem foi Mats durante todas essas horas em que passou jogando?

Lorde Ibelin Redmoore se tornou o principal personagem de Mats em seu universo de games.

O segundo era Jerome Walker.

“Jerome e Ibelin são extensões de mim mesmo, representam diferentes lados meus”, escreveu Mats.

Com o tempo, eles desempenhariam um papel importante na vida de outras pessoas também.

Mats jogava vários tipos de games online, mas acabava viajando com frequência para Azeroth – um planeta no jogo World of Warcraft.

Azeroth é um mundo de fantasia mítica com continentes, mares e florestas. Há penhascos e planícies, vilarejos e cidades. Mats passou a maior parte do tempo na região chamada Reinos do Leste.

Como um gamer, você vai conhecendo este mundo pouco a pouco, assim como conhece o mundo real.

Haverá lugares para onde você vai planejar viajar, paisagens e cidades que você domina – algumas mais do que outras. Em certas áreas, você vai precisar ficar alerta. Em outras, vai adorar sair e fazer novos amigos. Sem contar a sua comunidade local, onde se encontram seus amigos mais próximos.

É assim que o mundo funciona. É assim que Azeroth é.

Mats fez essa jornada e encontrou companheiros. Formou um amplo círculo de amigos queridos.

 

Mas se você não viajar para Azeroth, não será capaz de saber quão bom é

As aparências enganam

Robert Steen se lembra do que via.

“Quando passava pelo porão de Mats durante o dia, e as cortinas estavam fechadas… sentia uma tristeza de que me lembro muito bem.”

“‘Ah, não, pensava: ‘Ele nem sequer começou o dia ainda’. Eu ficava triste, porque o mundo dele era tão limitado.”

Mas quem não é um gamer não consegue enxergar o panorama todo.

“Achávamos que se tratava apenas do jogo. E nada mais. Pensávamos que era uma competição que você precisava ganhar”, diz Robert.

E havia a questão do ritmo circadiano – o ciclo diário de 24 horas do nosso organismo.

“Não entendíamos por que era importante para Mats estar online tarde da noite. Mas é claro, não é pela manhã ou no meio do dia que as pessoas estão jogando. Nesse horário, a maioria está na escola ou no trabalho.”

“Nós só entendemos isso depois que ele morreu. Até o último minuto, queríamos que ele estivesse dormindo às 11h da noite, como outras pessoas ‘normais’.”

Um roubo em Goldshire

Lisette Roovers, de Breda, na Holanda, era uma das amigas mais próximas de Mats. E foi uma das pessoas que voaram para Oslo em 2014 para participar do seu funeral.

Ela está na Noruega novamente – desta vez, visitando Kai Simon Fredriksen, que também jogava com Mats.

Sentada no sofá da casa dele, em Hoybraten, a nordeste de Oslo, Lisette lamenta a morte de Mats.

 

“Eu conhecia Mats havia muitos anos. Foi um choque quando ele morreu e isso mexeu comigo.”

Ela tinha apenas 15 anos e Mats, 16, quando se conheceram. Ou, para ser mais precisa: quando Rumour, personagem de Lisette, conheceu Ibelin.

Lisette Roovers e sua personagem, Rumour — Foto:  Patrick da Silva Saether/NRK Lisette Roovers e sua personagem, Rumour — Foto:  Patrick da Silva Saether/NRK

Lisette Roovers e sua personagem, Rumour — Foto: Patrick da Silva Saether/NRK

Hoje com 28 anos, Lisette lembra como foi.

“Nós nos conhecemos em Goldshire. Não é mais um lugar legal, mas naquela época Goldshire era uma pequena vila agradável, onde você podia conhecer novos personagens interessantes. Eu estava procurando alguém para jogar, e entre outros sentados ao redor de uma fogueira estava quem mais tarde eu viria saber que era Ibelin.”

Fonte: G1

 


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