Em menos de uma semana, o futebol brasileiro teve dois jogos com circunstâncias muito parecidas. No sábado, o técnico Enderson Moreira, do Botafogo, bateu boca com torcedores que estavam num setor mais próximo do campo. Na última quarta, o reencontro do Fluminense com sua torcida ficou marcado por vaias e xingamentos a jogadores e diretoria e pelos gritos de “time sem vergonha? no final. Nos dois casos, as equipes jogaram mal e foram derrotadas. Os episódios levaram a uma discussão sobre o quanto os atletas estão desacostumados com a pressão e como este elemento ? reinserido após mais de um ano de portões fechados ? pode influenciar no desempenho.

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Embora a cobrança exacerbada sempre tenha existido no futebol, estes questionamentos fazem sentido do ponto de vista científico. Foram 18 meses sem o apoio, mas também sem as críticas dos torcedores. Segundo Alberto Filgueiras, coordenador do Laboratório de Neuropsicologia Cognitiva e Esportiva, da Uerj, este tempo é suficiente para o jogador perder a espécie de “carcaça emocional? que desenvolve ao longo da carreira.

? Ao longo do tempo os gritos e xingamentos passam a fazer parte da vida do atleta. Ele se dessensibiliza. É como se parasse de prestar atenção. O que aconteceu na pandemia? A gente tirou este estímulo externo por mais de um ano. Os jogadores se habituaram ao silêncio dos estádios. Ou aos gritos das próprias comissões. Mas, dentro de uma comissão, por mais que haja cobrança, ninguém vai gritar palavras de ódio aos seus próprios jogadores.

 

Logo após o desentendimento no Nilton Santos, Enderson Moreira lamentou haver torcedores que levem tanta negatividade para o jogo. Dois dias depois, mais calmo, publicou carta na qual justificou seu destempero como um gesto de proteção aos atletas por entender tanto os efeitos de uma palavra de apoio quanto das críticas.

? Se você fica pouco exposto ou deixa de ficar exposto a certo grupo de estímulos, uma vez que eles voltam retornam também as primeiras ativações diante destes estímulos. Você fica mais sensível a eles ? explica o psicólogo da Uerj.

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Guardadas as proporções, os atletas com mais rodagem estão passando pela mesma experiência que os novatos promovidos ao profissional durante a pandemia. Com a diferença de que, por serem mais velhos, são mais cobrados.

Danilo Barcelos sentiu na pele. Mesmo não tendo sido um dos piores na derrota para o Fortaleza, foi o primeiro a ser xingado e vaiado. Uma reação que se explica pelas queixas antigas do torcedor em relação a ele.

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Aos poucos, a hostilidade foi sendo transmitida para os demais jogadores. Até o experiente Fred perdeu a cabeça. Não reagiu bem a um lençol e agrediu Ronald num lance em que o cartão amarelo saiu barato.

? Nossos jogadores criaram uma expectativa para esses torcedores. De chegar aqui, fazer um grande jogo e sair com a vitória. Na verdade, era a expectativa de todos nós. Falhamos com eles ? lamentou o técnico Marcão.

 

A pandemia foi pior com os times mandantes. Primeiro, a ausência de público diminuiu o efeito do fator casa. É o que aponta estudo conduzido pelas universidades de Leeds e Northumbria, do Reino Unido. A análise de 4.844 jogos em 11 países europeus mostra que, com torcida, as equipes somaram, em média, 0,39 pontos a mais como mandante. Já no período de portões fechados, esta vantagem caiu. Os clubes obtiveram 0,22 pontos a mais do que quando atuavam como visitante.

Agora, o desafio é reacostumar-se com a pressão. O processo de dessensibilização pode levar de um a dois meses. Mas clubes que contam com departamentos de psicologia podem promover trabalhos para acelerar este prazo.

? É um período de readaptação para todos, jogadores e também torcida ? opina o volante Fellipe Bastos, do Goiás. ? Depois de um gol, estávamos muito calados. A gente entende a pandemia, mas sempre quisemos o torcedor do nosso lado. Claro que tem o ônus e o bônus. É o torcedor ao nosso lado na comemoração do gol e também a crítica. É normal, do futebol. Temos de estar preparados.