No século XIX, o beisebol criou a sua primeira liga. No século XX, na década de 1960, o futebol americano e o basquete consolidaram a NFL e a NBA como as conhecemos hoje ? e que inspiraram todas as ligas criadas depois. Se após 100 anos pouco mudou o modelo institucional de uma liga e a natureza dos atores que nela investem, o mesmo não pode ser dito sobre os motivos que levam as associações esportivas a discutir novos formatos para captar recursos. Nesse processo, muito se fala sobre o modelo ? o “como? ?, mas pouco se discute sobre seus atores e suas motivações ? “o quem? e o “porquê?.
A MLB formou a primeira liga porque precisou reunir recursos para continuar o jogo. No século seguinte, as ligas organizaram o mercado doméstico através de franquias regionais extremamente lucrativas, como a NFL, e coordenaram a venda dos direitos televisivos em “modo atacado?. Entretanto, nos anos 1990, com globalização e internet, o esporte se transformou em entretenimento, cresceu a demanda por internacionalização e, junto com isso, a necessidade de investir em tecnologia para gerar grandes espetáculos ao vivo que pudessem ser transmitidos em escala global. Longe de ter alcançado globalização plena, o esporte adentra este século enfrentando a era digital e a emergência do streaming, que pulveriza em “modo varejo? as receitas de direitos televisivos e aumenta a demanda por inovação, agora visando engajamento do fã.
Entre uma onda e outra, o esporte, mais recentemente, ingressou na “economia da atenção?. Isto é, a atenção passa a ser considerada um recurso escasso para qual o tempo é a unidade de medida e de valor. Desta forma, mais investimento em tecnologia é necessário, já que é preciso desenvolver e entregar o produto vencedor na disputa pela atenção. Grandes eventos, elenco célebre e muito investimento para conquistar frações do concorrido tempo do fã.
Finalmente, esse ano, testemunhamos um “novo fenômeno?: a voz não mais inaudível dos atletas profissionais. Esportistas que declaram ser sujeitos a limites mentais e físicos. É a priorização do bem-estar. O desejo de ser feliz fazendo o que gosta parece ser a próxima grande conquista desses profissionais. Uma grande ruptura de baixo para cima na organização esportiva, que há um século proclama a honra da vitória sem muito se aprofundar nos custos pessoais.
Assim, ao longo do tempo, a organização esportiva profissional precisou acomodar, como camadas de um bolo, uma série de demandas, nem todas resolvidas, mas as quais, apesar de não terem sido criadas por ela, têm impacto decisivo na sua sobrevivência.
Quem financia o esporte
A entrada do capital privado no esporte é novela com enredo de poucos atores. No século XIX, o esporte não era um negócio, muito menos emprego. Alguns altruístas, ricos ou nem tanto, investiam seu próprio dinheiro e captavam de amigos e parceiros para fazer o esporte acontecer. O Comitê Olímpico Internacional, acreditem, começou assim.
No passado, os investimentos eram pessoais. Mais tarde, nos EUA, chegaram os bancos de investimentos, modelo seguido pelo resto do mundo; agora estamos na geração das private equities, empresas gestoras que agrupam em fundos recursos de vários investidores públicos e privados os quais são aplicados visando rentabilidade. Do ponto de vista das organizações esportivas, e de acordo com seus interesses, essa tipologia de investidores tem convivido pacificamente no mercado.
Nos EUA, bancos e pessoas ricas compram times. Por exemplo, JP Morgan esteve por trás do financiamento da Super Liga Europeia; Steve Balmer, um dos fundadores da Microsoft, é o dono dos Clippers, da NBA. A família Glazer, com fortuna avaliada em US$ 4,5 bilhões, é dona da do Tampa Bay do astro Tom Brady e comprou 90% do Manchester United. A Europa prima pela diversidade entre investidores: do xeque qatari controlador do fundo que financia o PSG à Zhang Jindon, dono da chinesa Suning, líder em varejo, que detém 70% da Inter de Milão.
No mundo das private equities, a Fórmula 1 puxou o cordão. Em 2006, a CVC Capital Partners, gestora que administra uma carteira de US$ 115 bilhões, investiu cerca de US$ 1 bilhão para gerir as atividades comerciais da categoria. Dez anos depois, diz o mercado, sua parte foi revendida com 450% de lucro. Recentemente, a CVC voltou a investir no esporte com o rúgbi e com o vôlei. Com a La Liga, o aporte negociado é de 2,7 bilhões de euros.
Do ponto de vista da governança, há muita diferença entre captar recursos junto a pessoas privadas, bancos, empresas privadas e private equities. Pessoas privadas, exceto pelo imposto de renda, não precisam dar satisfação de onde e como gastam. A História mostra que, raras exceções, ricos entram no esporte por interesses que variam da geopolítica ao ego. Bancos, em busca da melhor rentabilidade, têm demonstrado cercear a capacidade política dos dirigentes esportivos junto às suas federações e confederações. Empresas privadas, prioritariamente as asiáticas que encheram de júbilo o mercado, agora pararam de investir, pois a Covid alterou políticas públicas e privadas (um caso recente envolve a Inter, que ficou com “o pires na mão?).
As private equities têm histórico de sucesso no esporte. Ao entrar, criam uma empresa onde aportam os recursos e gerenciam os ativos comerciais (eventos, direitos televisivos, etc); assim, garantem a sustentabilidade financeira da operação e deixam a política do esporte sob a tutela da organização esportiva.
Enfim, há recursos para o esporte, mas há uma regra: sustentabilidade financeira somente acontece sob gestão profissional. Não há exceção.
As demandas da indústria do entretenimento se acumulam e, com elas, cresce não só a necessidade de investimento, mas os valores também. Como nesse negócio vale a máxima de que “quem fica parado anda para trás?, nasce a oportunidade para captação de recursos junto a indivíduos, empresas, bancos e private equities.
Para a organização que busca enfrentar essas demandas e se equilibrar financeiramente, buscar recursos externos não é uma opção, e sim a falta dela, pois o montante necessário ao tamanho da empreitada não está disponível dentro do sistema esportivo. Isso significa que artifícios utilizados como antecipação de receita de direitos televisivos ou mesmo a venda de atletas não são suficientes para fazer frente aos investimentos que a evolução do setor requer.
Entretanto, sabemos também que nem todas as captações feitas no mercado pelas organizações esportivas foram precedidas pela formação de uma liga. Portanto, a liga é o “como? e não o “porquê? ou o “quem?. No momento em que o Brasil discute sua liga de clubes e o Senado aprova o clube-empresa, deveríamos adquirir o saudável hábito de falar mais sobre os “porquês? e sobre o “quem?.
*Maureen Flores é doutora em Estratégia e Desenvolvimento, especialista em inovação no esporte
Fonte: O Globo