BRASÍLIA – O servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) Yunes Eiras Baptista, que entrou em campo durante o jogo entre Brasil e Argentina no último domingo, relatou várias obstruções a seu trabalho e até mesmo uma tentativa do presidente em exercício da CBF, Ednaldo Rodrigues, de colocá-lo em contato com o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. Yunes foi ao local, com apoio da Polícia Federal (PF), tentar retirar quatro jogadores argentinos que violaram as normas sanitárias brasileiras.

“Por volta das 16:45 ? Fui abordado pelo Sr. Ednaldo Rodrigues ? Presidente da CBF informando que estava em contato com a Casa Civil e se eu poderia falar com o Sr. Ministro Ciro Nogueira, neguei o contato e informei que se dirigisse à diretoria da ANVISA a qual me encontrava subordinado visto que se tratava de ação sanitária e legal”, diz trecho do relatório.

Ciro já foi cartola, tendo presidido o River do Piauí, e tem bom trânsito entre os cartolas. O GLOBO pediu, por meio da assessoria de imprensa, uma manifestação do ministro sobre o episódio e aguarda retorno.

Ainda de acordo com Yunes, várias outras pessoas que “se identificaram como dirigentes de alguma instituição perguntaram se seria possível negociação”. Outros, como Sergio Ribas, vice-presidente da Comissão de Governança e Transferência da Conmebol tentaram “conversas mais discretas”. Ribas “solicitou se poderia fornecer o telefone para contato de algum diretor da Anvisa ao qual estaria subordinado”.

“Durante todo este tempo fiquei em pé no corredor de acesso ao vestiário da Argentina e cercado por seguranças, dirigentes e comissão técnica, sendo minha proteção os policiais da PF e dois policiais militares do Estado de SP”, diz trecho do relatório.

Pelas regras sanitárias brasileiras, viajantes estrangeiros que tenham passado nos últimos 14 dias pelo Reino Unido, África do Sul e Índia estão impedidos de ingressar no Brasil, como forma de evitar a disseminação da variante delta do coronavírus. Quatro jogadores argentinos prestaram informações falsas para não serem barrados. Outro agravante é que, no sábado, mesmo avisados sobre a quarentena no hotel, os jogadores saíram para treinar.

Ao longo do relatório de cinco páginas, Yunes narra os fatos que antecederam a interrupção do jogo válido pelas eliminatórias da Copa do Mundo, com início da ação de fiscalização às 13h30. O servidor cita que foi constrangido por pessoas que estavam no estádio e somente após insistência, com apoio de agentes da Polícia Federal, conseguiu entrar em campo.

“Salientamos a falta de colaboração no cumprimento das medidas sanitárias, pelos envolvidos (CBF, CONMEBOL, AFA e os próprios jogadores de futebol), que aparentemente de forma deliberada obstruíram e constrangeram servidores públicos em cumprimento de ação em prol da saúde pública do povo brasileiro, com base na legislação brasileira vigente”, diz trecho do relatório.

Ele contou que saiu do aeroporto de Guarulhos às 14h20, tendo chegado ao estádio às 14h50, momento em que já teve eu trabalho obstruído: “Na entrada já foi observada dificuldade de apoio da organização e obstrução; ninguém sabia informar ou orientar. Após 5 minutos fomos orientados a seguir para o portão de acesso E, que se encontrava fechado.”

Às 15h13, o servidor relatou nova dificuldade. Ele e os policiais federais foram colocados numa fila para acesso aos elevadores, atrasando o procedimento e “só recebendo prioridade após manifestação mais incisiva”.

Ele afirmou que, por um tempo, teve contato apenas com seguranças e pessoal de apoio, sem acesso a alguém com poder decisório.

“O fato de não ter sido direcionado a um interlocutor com poder decisório (dirigentes e ou organizadores da instituição) em uma área específica (mais privada), sendo direcionado para uma área de exposição pública (camarote), em meu juízo indicava tentativa de constrangimento”, escreveu.

Hesitação da Polícia Federal

Ele também relatou certa hesitação dos policiais federais quando os questionou sobre o limite do apoio que poderiam dar, “pois a tomada de medidas deveria estar embasada legalmente para evitar possíveis reações negativas”. Assim, Yunes ligou para o diretor da Anvisa Alex Machado Campos pedindo que ele solicitasse à direção da PF pleno apoio e que essa informação fosse repassada aos delegados que estavam no estádio. No fim do relatório, porém, Yunes fez “um agradecimento especial à Polícia Federal e seus membros que participaram desta ação, não somente pelo cumprimento do dever, mas no apoio e segurança dispensada ao servidor desta Agência”.

Um relatório da chefe do Posto de Vigilância da Anvisa  no Aeroporto de Guarulhos, Elisa da Silva Braga Boccia, também aponta hesitação da PF. Segundo ela, antes da ida ao gramado, a Polícia Federal hesitou em conter a saída dos jogadores do hotel. Segundo Boccia, após o envio de um e-mail à PF informando sobre o caso e solicitando as medidas cabíveis, por volta das 12h40, o delegado Rodrigo Sanfurgo, telefonou a ela pedindo mais esclarecimentos sobre o tema.

Uma hora depois, Sanfurgo voltou a telefonar, dessa vez para informar que a seleção argentina se preparava para deixar o hotel. Nesse momento, o delegado insistiu que uma equipe da Anvisa fosse ao local para impedir a saída dos jogadores. A servidora afirma que respondeu a Sanfurgo que “as informações e o pedido para intervenção já haviam sido enviados a PF” e disse que a ida de uma equipe da Anvisa não seria necessária, mas diante da insistência, tentou enviar servidores ao local.

“Pedi que tentassem impedir a saída do hotel, para que a situação fosse resolvida sem deslocamento até o estádio. Em seguida, entrei em contato com a equipe de plantão da Anvisa em atividade no Aeroporto de Guarulhos, para emissão de Notificação a cada jogador, para cumprimento em prazo imediato. No entanto, como a solicitação da PF foi passada as 13:40 hs, não houve tempo hábil para deslocamento da equipe da Anvisa até o hotel”, diz Boccia no relatório.

Às 15h30, Yunes, o servidor que foi até o estádio, disse ter saído do camarote, sendo acompanhado de forma desorganizada pela equipe de segurança. Apareceu então uma pessoa que os orientou a ir até o vestiário, onde foram direcionados a uma sala adjacente.  Segundo ele, “se apresentam várias pessoas para tratar do assunto fazendo várias perguntas e colocações (aparência de tumultuar)”. Também “foi colocado em vários momentos se algum dirigente poderia assinar pelos jogadores, sendo prontamente negado”.

Ele e os policiais federais ficaram na sala perto do vestiário até o momento em que foi possível ouvir o hino nacional, quando perceberam que a partida começaria.

“Mais uma vez, houve uma tentativa desorganizada de evitar a ação, porém os policiais da PF seguiram junto abrindo caminho. Neste momento vislumbrando a possibilidade de obstrução plena bem como desacato, falo rapidamente ao delegado Rodrigo Luis da possibilidade e da necessidade de adentrar ao jogo (campo) e identifico que ele está em contato com seus superiores. Chegando ao túnel de acesso ao campo é feita uma parada pois visualizamos que a partida já havia iniciado e se inicia toda uma serie de interlocuções por várias pessoas que se apresentam como membros da CONMEBOL, CBF e AFA (no calor do momento não foi possível realizar identificação)”, escreveu o servidor da Anvisa.

No campo, Yunes procurou o árbitro de apoio junto ao VAR, mas ele falava espanhol. Outras pessoas foram então até o servidor da Anvisa que dizem ser necessário negociar para chegar um meio termo.

“Diante da situação e em contato visual  com o delegado Rodrigo Luis e o delegado Pedro Henrique, faço a pergunta se podemos entrar em campo para notificar os jogadores. O mesmo responde que sim. Diante do fato, o delegado Pedro avança e sigo logo atrás. Neste ponto as imagens televisivas e públicas são registros mais completos e fidedignas do ocorrido”, contou Yunes.

Ele afirmou ainda que a CBF pediu para esperar até o intervalo do jogo, o que foi negado pelo servidor. Ele disse também que foi ao estádio para retirar os quatro jogadores, e não para impedir a partida.

Às 17h30, os policiais federais avisaram Yunes que os jogadores argentinos não assinariam as notificações e voltariam diretamente ao aeroporto, sem passar pelo hotel. Às 18h, o servidor e a equipe da PF também começaram o retorno ao aeroporto, chegando às 18h30. Lá, os policiais federais assinaram as notificações na condição de testemunhas de que houve recusa por parte dos jogadores da seleção argentina.