“Estava destruída, de joelhos e querendo tirar minha própria vida.”
Sentada com os braços em volta do corpo, como se buscasse conforto e proteção, Sarah conta sua história a 50 pessoas de um grupo de apoio. Todos escutam atentamente o momento que ela define como sendo o pior de sua vida.
“Supermercados eram meu pior pesadelo”, diz ela. “Estar cercada por alimentos que poderiam me fazer sofrer me fazia chorar”, acrescenta ela, em uma reunião do Overeaters Anonymous (Comedores Compulsivos Anônimos, em tradução livre).
Sessões como essa são pensadas para ajudar pessoas que estão se recuperando de comportamentos alimentares compulsivos como a bulimia – quando alguém sente vontade de comer mesmo sem fome e não consegue parar mesmo quando está saciado. É um comportamento frequentemente associado ao transtorno de compulsão alimentar, o segundo distúrbio alimentar mais comum no Reino Unido, e pode levar à morte.
Você pode achar que sabe o que é comer demais. Você provavelmente já brincou dizendo que é “viciado” em chocolate, que não pode dizer não a um doce ou que um pote de sorvete te ajudou a superar o término da sua última relação. Mas para pessoas que sofrem de distúrbios alimentares, o desejo de comer em excesso tem um significado muito mais sério.
12 milhões de comedores compulsivos
De acordo com o Centro Nacional de Transtornos Alimentares, uma em cada duas pessoas que buscam ajuda para perder peso comem compulsivamente – isso representa cerca de 12 milhões de pessoas no Reino Unido.
Comer em excesso vem ganhando cada vez mais destaque em meio à opinião pública. Muita gente ainda acredita que a solução passa pela força de vontade. Já as autoridades vêm se concentrando em estabelecer diretrizes para determinar o tamanho ideal das porções e aumentar os impostos sobre alguns tipos de alimentos.
Atualmente, o NHS (sistema britânico de saúde pública) oferece Terapia Comportamental Cognitiva e recomenda sessões de autoajuda como tratamento para distúrbios alimentares.
Mas para aqueles para quem comer demais se torna uma compulsão, existe uma solução alternativa.
No Comedores Compulsivos Anônimos, os membros seguem um programa de 12 passos, semelhante ao do Alcoólicos Anônimos (AA). Esses passos variam desde admitir a impotência frente ao transtorno a fazer as pazes com pessoas com quem você talvez tenha brigado por causa de problemas alimentares.
Os participantes são apoiados por alguém que se recuperou e participa de reuniões – como a de Sarah.
Compulsão afeta a todos
Embora o Alcoólicos Anônimos seja recomendado pelo NHS como parte de um plano de recuperação para o alcoolismo, os médicos no Reino Unido não sugerem formalmente o Comedores Compulsivos Anônimos a pacientes com problemas alimentares ou distúrbios.
A associação surgiu em Los Angeles em 1960 e, de acordo com seu site, tem agora 6,5 mil grupos em mais de 75 países, com uma adesão total de cerca de 54 mil pessoas. No Brasil, há grupos em pelo menos 15 Estados.
Identificar um “comedor compulsivo” pode ser complicado – para começar, eles não estão necessariamente acima do peso. Podem ser desde obesos mórbidos a pessoas abaixo do peso. A compulsão alimentar também pode afetar qualquer pessoa de qualquer idade – as reuniões têm participantes de 20 a 70 anos.
Há uma mistura de etnias e sotaques, e as pessoas estão vestidas com roupas que variam de roupas esportivas a camisas e calças sociais. Apesar da intensidade de alguns dos sentimentos compartilhados, a atmosfera é tranquila, com homens e mulheres trocando sorrisos e olhares de apoio.
“Estou petrificada”, conta uma mulher que está prestes a sair de férias de duas semanas com a família. Ela diz estar com medo de que a viagem possa desencadear um descontrole alimentar.
Uma mulher de 60 anos explica que se abstém de comer compulsivamente desde os anos 1980. “Levo o vício comigo aonde quer que eu vá. E estarei trabalhando na minha cura para o resto da minha vida.”
‘Monstro dentro de mim’
Durante uma discussão em grupo, vários participantes descrevem-se como “viciados em comida”. Hannah*, uma cenógrafa de 24 anos, é uma delas. Antes de participar do grupo de apoio, ela havia tentado quase tudo, de terapia a medicina tradicional chinesa. Hannah lutou contra a anorexia na adolescência, que, segundo ela, “andou de mãos dadas” com seu comportamento compulsivo.
“Foi quase como se eu tivesse que controlar esse monstro dentro de mim que queria devorar tudo”, diz.
Algumas de suas piores bebedeiras aconteciam nos corredores da universidade, onde Hannah dividia a cozinha com outras cinco companheiras de apartamento. Quando não estavam por perto, ela revirava os suprimentos das colegas em busca da comida.
“O segredo causava uma descarga de adrenalina”, diz ela. “Abria o armário delas para buscar comida. Ultrapassava todo e qualquer limite.”
O descontrole era tanto que Hannah não selecionava o que comia. “Pegava legumes e verduras congelados no freezer ou colocava ketchup no alface”, lembra.
Em seguida, praticava exercícios físicos intensos. Também controlava rigidamente sua dieta. Mas não demorava muito para ter uma nova recaída.
O impacto em sua saúde mental desse ciclo constante de desordens alimentares a deixou desesperada. Hanna começou a procurar ajuda online e descobriu o Comedores Compulsivos Anônimos em um blog.
No início, ela não estava convencida de que os 12 passos funcionariam. Mas, assim como no Alcoólicos Anônimos, os membros do Comedores Compulsivos Anônimos são acompanhados por um “padrinho” experiente no programa.
Hannah e seu “padrinho” trabalharam nos passos juntos, mas não era um caminho fácil. O Passo Oito – no qual os participantes são instigados a fazer as pazes com aqueles que prejudicaram – foi particularmente desafiador.
Quando avaliou fazer as pazes com suas antigas colegas de apartamento, Hannah diz que se sentiu muito nervosa. Mas seguiu adiante.
“Pedi desculpas às pessoas de quem peguei comida – alguns pessoalmente e a outras pelo Skype porque agora vivem em outros países”, diz ela. “Elas foram todos muito fofas.” Algumas acharam um pouco estranho, admite.
“Esse é o ponto, fazer as pazes nem sempre é uma experiência incrível”, diz ela. “Algumas pessoas reagem com estranheza.”
O importante para ela não era o resultado em si, mas limpar sua “bagagem emocional” de forma que pudesse ter a liberdade para deixar para trás seus problemas alimentares.
‘Obcecada por comida’
Na reunião seguinte do grupo de apoio está Zoe*, de 26 anos, que trabalha na área de finanças. Calmamente, ela confessa que era uma garota de 11 anos “insegura e obcecada por comida” e acha que jamais superou a compulsão de comer. “Senti que precisava ser colocada na prisão para me recuperar.”
Seus excessos compulsivos atrapalharam seus estudos na universidade, isolaram-na de seus amigos e deixaram sua autoestima no fundo do poço. “Definitivamente não era suicida, mas não imaginava me formar”, diz ela. “Simplesmente não conseguia pensar sobre como seria minha vida porque eu só podia pensar sobre como passar o dia sem comer nada.”
“Só conseguia me concentrar naquele dia e em ser magra.”
Quatro anos atrás, ela decidiu confrontar seus problemas em torno de alimentação e se internou em uma clínica de reabilitação privada.
Foi assim que teve o primeiro contato com o Comedores Compulsivos Anônimos. Depois de alguns retrocessos e o fim de um relacionamento, Zoe concentrou seus esforços totalmente em seguir o programa.
“Hoje eu como o que quer que seja”, diz.
Parcela de homens aumenta
George*, de 37 anos, senta-se em frente a Zoe e é fácil de ser percebido – afinal, ele é um dos poucos homens na sala. Isso talvez não seja surpreendente. Embora estudos sugiram que 25% das pessoas com distúrbios alimentares sejam homens, condições como anorexia e compulsão alimentar ainda são vistas por muitos como doenças de mulheres, deixando os homens menos confiantes sobre o diagnóstico.
“Comigo, a comida era fundamental para o conforto, a recompensa, o amor – tudo”, diz ele. Tendo se tornado obeso quando era menino, entrou para um clube de emagrecimento no início da adolescência. “Eu tinha 14 anos e sabia que havia mais calorias em uma maçã verde do que em uma maçã vermelha”, diz ele. Era obsessivo com a comida e aos 20 anos comecei a expurgar. Então começou um ciclo de excessos e bulimia.
Incentivado por seu namorado, George finalmente foi ao médico. Saiu de lá encaminhado para uma unidade de distúrbios alimentares, onde foi diagnosticado com bulimia e compulsão alimentar. Mas quando chegou ao hospital, sentiu-se desconfortável.
“Entrei e – sendo um cara gordo, de 32 anos – me senti como uma fraude, como se não me deveria estar ali”, diz ele. “Senti muita vergonha por ser um homem.”
Embora o número de homens que integram o Comedores Compulsivos Anônimos seja menor que o de mulheres, George – que vem participando das reuniões há cinco anos – notou um pequeno aumento nessa parcela. Se antes havia dois homens num grupo de 60 pessoas, agora eles são oito, até dez, estima ele.
Vício em comer
George, como Hannah e Zoe, descreve a si mesmo como tendo sido “viciado” em comida. “Dependência alimentar” é um assunto controverso. Uma pesquisa de 2014 sugere que não há evidências suficientes para rotular qualquer alimento específico como viciante. Pesquisadores agora propõem o termo ‘vício em comer’ para ajudar a enfatizar um elemento mais comportamental. Alguns psicólogos acreditam que o rótulo ‘vício’ é inútil, alegando que isso impede as pessoas de assumirem responsabilidade por sua alimentação excessiva e recuperação.
Deanne Jade, fundadora do Centro Nacional de Desordens Alimentares, rejeita a ideia de “dependência alimentar”, mas reconhece que as pessoas que frequentam o Comedores Compulsivos Anônimos podem considerá-lo favorável, uma vez que comer demais compulsivamente é um “problema solitário”.
No entanto, em sua opinião, é necessária uma avaliação psicológica para descobrir se alguém realmente tem ou não um problema em comer demais – algumas pessoas, explica Jade, pensam que comeram demais depois de uma barra de chocolate.
“Como se distingue alguém que come demais de um comedor emocional e de um comedor compulsivo?”, questiona. “Não há uma divisão clara, é preciso bastante análise e observação de alguém qualificado.
Jade explica que, em testes cegos, quando uma pessoa que se diz viciada em açúcar come açúcar, mas seu sabor é mascarado, responde como se não o tivesse comido – não mostrando aumento no desejo ou perda de controle. Isso sugere que qualquer efeito “viciante” dessas substâncias é fundamentalmente psicológico.
Mas nem todos os especialistas em distúrbios alimentares concordam com a visão de Jade. Nicola Schlesinger, psicoterapeuta que trabalha com mulheres com dependência e transtornos alimentares, disse à BBC em 2013 que aqueles que não acreditam na dependência alimentar não veem o que ela causa diariamente.
“Eles podem dizer o que quiserem, mas, no final, ainda temos que lidar com a situação de frente”, disse ela.
À medida que a sessão da Comedores Compulsivos Anônimos se aproxima do fim, um dos responsáveis pergunta se o grupo tem algum marco a celebrar.
“Sim”, diz um homem jovem, endireitando-se em sua cadeira. Ele estava comemorando sua meta de um mês.
Um sorriso enorme e radiante se espalha em seu rosto e a sala explode em uma rodada de aplausos.
*Alguns detalhes foram modificados para preservar o anonimato dos entrevistados
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Fonte: Terra Saúde