Há menos de um mês, a afegã Kimia Yousufi fez história. Sem saber que seu país viveria novo capítulo tenso dali a poucas semanas, ela orgulhosamente carregou a bandeira do Afeganistão na cerimônia de abertura da Olimpíada de Tóquio. Dias depois, com roupa que cobria todo o corpo, correu a eliminatória dos 100m no mesmo Estádio Nacional. Ficou em sétimo na bateria, com 13s29, um segundo e meio atrás do tempo suficiente para se classificar, mas bateu o recorde nacional. É possível que sua marca dure por muito tempo, mas essa não é uma boa notícia para Yousufi. A volta do Talibã ao poder é uma ameaça não só para sua carreira, mas também para todo o esporte olímpico no país, em especial às modalidades femininas.

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A história de Yousufi, como a de muitos afegãos, é marcada pelo Talibã. Especialmente porque ela nasceu no mesmo ano em que o grupo extremista chegou ao poder pela primeira vez, em 1996. Seus pais são de Kandahar, a segunda maior cidade e berço do grupo que ficou no poder até 2001. Temendo pelo futuro, sua família fugiu para o Irã, onde a atleta nasceu apenas quatro meses antes da instauração do Emirado Islâmico do Afeganistão pelos radicais. Mesmo nascida em solo iraniano, Yousufi cresceu sem poder representar um país, pois sua situação era de refugiada afegã, mesmo sem nunca ter pisado lá ? o que só mudou em 2013, quando o governo afegão incentivou o esporte com um campeonato de talentos para quem vivia fora do país.

Agora, tudo volta a ser uma incógnita. Sem maiores sinais de violência, o Talibã retomou o poder nesta semana, e visando maior aceitação diplomática, diz que as coisas não mudarão para as mulheres, convocando para o trabalho e garantindo anistia. Já há, no entanto, relatos de perseguição a ativistas, e não é exagero supor que o protagonismo feminino no esporte esteja com os dias contados.

? A minha perspectiva é bastante pessimista, apesar do Talibã estar tentando discurso mais moderado. Acredito que vá se repetir a opressão com as mulheres. Ou elas seriam proibidas de participar de campeonatos internacionais ou enfrentariam uma série de limitações. Vai acontecer também aumento de mulheres afegãs em busca de refúgio, inclusive atletas ? diz Mauricio Santoro, cientista político e professor de relações internacionais da UERJ.

Esporte é resistência

É que o esporte, de certa forma, virou ativismo em Cabul. Em 2016, uma primeira academia de ginástica só para mulheres foi aberta na cidade, o que foi visto como símbolo de resistência, já que a prática esportiva era proibida às afegãs.

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? Era minha ambição de vida abrir esta academia. O Afeganistão é uma sociedade conservadora, mas em desafio a isso, abri com a esperança de contribuir para o empoderamento feminino. Meu maior desejo é dar apoio à causa das mulheres e encorajá-las a sair de suas casas, praticar esportes e se exercitar ? disse a um blog feminista, em 2016, Tahmina Mahid Nuristani, fundadora da academia.

Suas palavras já fazem parte de um passado: os relatos vindos de Cabul falam de temor, principalmente das mulheres, em saírem às ruas.

Ao mesmo tempo em que o futebol feminino cresceu após a queda do Talibã ? são 22 times só em Cabul e mais de 1 mil praticantes no país ?, as memórias do passado, quando até homens da seleção nacional foram presos por jogarem de bermuda, colocam o esporte, assim como a política e a sociedade em estado de temor. E a dúvida fica maior porque hoje há no país, ainda que mínima, alguma estrutura para a prática do esporte, como confederações, federações e organização governamental, algo impossível há 20 anos.

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Em 1996, ano da tomada do poder pelo Talibã, o Afeganistão competiu nos Jogos Olímpicos de Atlanta com dois atletas. Um boxeador eliminado porque chegou atrasado e um maratonista que terminou a prova em último, uma hora e meia depois do penúltimo. O caos olímpico e esportivo do país estava só começando: com restrições às mulheres no esporte e até aos homens, o COI suspendeu o país de Sydney, em 2000. Apesar da insistência do Talibã em reverter a suspensão, nada foi feito, e o governo local proibiu atletas de irem à Olimpíada representando bandeira neutra.

A queda do Talibã e a formação no novo governo no início do século permitiu ao Afeganistão retomar a vida esportiva e olímpica, inclusive com a conquistas de dois bronzes no taekwondo, únicas medalhas do país, em Pequim-2008 e Londres-2012.

Assistindo esse cenário no Irã, Kimia Yousufi conheceu o atletismo aos 13 anos, na escola, e passou a se destacar como velocista.

Em 2013, se destacou numa competição para refugiados e o país passou a patrocinar seu treinamento. Apesar da falta de estrutura adequada ? ela treinou apenas por quatro meses ? Kimia foi a única mulher a representar o Afeganistão na Rio-2016.

Porta-bandeira, o que se repetiria em Tóquio, Yousufi foi ovacionada no Maracanã quando adentrou o estádio com o símbolo verde e vermelho escuro, além do preto ? uma combinação de cores densas que, aos poucos, era mais identificada com uma nação do que com o terror do Talibã. Foi a primeira grande mensagem do desfile das delegações, já que o Afeganistão foi o segundo a desfilar. Em ação, com o tempo de 14s04 nos 100m, chamou a atenção pela roupa no Estádio Nilton Santos.

? Meu único objetivo na Olimpíada do Rio foi aparecer para que o nome do meu país seja falado ? disse ela à época, ressaltando que a situação do Afeganistão não a permitia treinar em igualdade com os adversários. ? Um bom tempo já é uma medalha para mim e para o meu país.

Cenário de incerteza

Yousufi não foi a primeira mulher afegã a participar dos Jogos, e sua antecessora, de quem bateu o recorde afegão em 2016 e 2021, é um símbolo do quanto as coisas estavam melhorando. Robina Muqimyar correu os mesmos 100m em Atenas-2004, só alguns anos após a queda do regime. Virou símbolo do renascimento feminino no país, e depois de perder uma eleição ao parlamento, em 2010, venceu a segunda tentativa em 2019. Hoje, além de congressista, é vice-presidente do Comitê Olímpico do Afeganistão ? onde cuida especificamente do esporte feminino ?, e desde o ano passado chefia a federação de atletismo do país.

Ao mesmo tempo em que sua história é de evolução e conquista de mais direitos para as mulheres atletas, quatro anos depois, em Pequim-2008, as duas mulheres da delegação afegã tiveram que fugir dos treinamentos preparativos na Itália e pedir asilo político na Noruega, abandonando antes da abertura o sonho olímpico. O motivo? Estavam sendo ameaçadas de morte caso participassem por grupos ligados ao Talibã. Um retrato fiel das idas e vindas da liberdade em um país que tem uma grande interrogação pela frente. (Colaborou Marcello Neves)