“Desculpe aí, Brasil?. A escalada olímpica da boxeadora Beatriz Ferreira terminara poucos segundos antes, com voto unânime dos cinco jurados: a adversária irlandesa fora melhor na final da categoria peso leve. Portanto a baiana espoleta que encantara o país com sua garra e autenticidade se tornava a segunda melhor do mundo! Medalha de prata. A primeira reação da atleta saiu como um raio, e não foi o júbilo pelo pódio. Em disparada até uma câmera que transmitia o evento ao vivo, ela se desculpou com o Brasil por não ter conquistado o ouro. Como assim, Bia? É o país que lhe deve desculpas, a você e às tantas Bias invisíveis, por não proporcionar condições de cidadania melhores ao nascer, crescer, sonhar e competir.
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Filha de boxeador, a atleta seguiu o norte de sua excepcional aptidão e do amor à modalidade. Mas não fosse o boxe o celeiro natural e muitas vezes único para jovens do Brasil periférico, talvez Bia pudesse ter sido encaminhada para outro esporte ? qualquer um que não exija socar e ser socado, única modalidade olímpica cujo objetivo reside não em superar, mas em nocautear o adversário.
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Mais do que qualquer edição anterior, Tóquio-2020 deu mostras de que o Olimpo está aqui, em solo brasileiro, à espera apenas de ser melhor garimpado, escolarizado, nutrido, preparado. O salto dado pelo país nesta 32ª edição dos Jogos é animador, por multifacetado: maior número de medalhas (sete ouros, seis pratas, oito bronzes, total 21), melhor colocação no ranking (12º lugar), melhor desempenho em modalidades até então impensáveis como tênis de mesa e saltos ornamentais. Sem falar, é claro, da serena confiança com que Rebeca Andrade arrombou a porta na ginástica artística; de Italo Ferreira surfando no ouro e cambalhota no pódio; dos irresistíveis skatistas Pedro Barros, que chama sua medalha de prata de “suvenir?, Rayssa Leal, nossa fadinha adolescente de frescor encantado, e o “menino-maluquinho? Kelvin Hoefler; de Isaquias Queiroz, que conquistou o ouro formando com sua canoa uma extraordinária escultura em alta velocidade. Eternizada na biografia do indomável Hebert Conceição, junto com o nocaute que lhe valeu ouro na categoria até 78 kg, ficará a língua que fala: “falo rocambole para não falar caralho?.
À espera de oportunidade
Nas modalidades que sempre nos dão alegrias e agonias em dosagem igual ? a vela, o judô, o futebol, o vôlei e a natação ? tiveram lances de roer unhas em tempos de insônia pandêmica. Resta uma interrogação, a mesma de sempre e sempre doída: como é possível que um país imenso de 230 milhões de pessoas, clima generoso para se praticar atletismo de pista e campo o ano todo, seja incapaz de produzir levas e mais levas de corredores e saltadores? Nas ruas de terra batida por onde andam de pés descalços ou chinelos de dedo, não faltariam candidatos a uma oportunidade, apenas uma. Enquanto a Jamaica e o Caribe têm orgulho de seus velocistas (não apenas das estrelas), e o Quênia aperfeiçoa a sua já consagrada tradição fundista, o Brasil continua à míngua onde tudo deveria começar: na escola, no bairro, na comunidade de onde se chega ao Olimpo.
Quase todos os atletas de baixa renda que se sobressaíram nestes Jogos foram apadrinhados por algum programa público de incentivo ao esporte. Muitas vezes bastaria um empurrão inicial, sólido e sustentável.
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Ainda assim, em 2021, o atletismo não conseguiu emplacar nenhum finalista além do excepcional Thiago Braz (bronze no salto com vara), Alison dos Santos na corrida de 400m com barreiras (bronze não menos admirável), da quarta colocação no arremesso de peso de um atleta que o país tem motivos para amar ? Darlan Romani ? e do 11º lugar de Izabela da Silva no arremesso de disco. O Nordeste conseguiu mostrar um pedacinho do seu potencial, e a Bahia passa a se considerar potência olímpica diante de seus feitos em Tóquio.
É pouco e desalentador. Mas assim é. Vale lembrar que, décadas atrás, o Brasil é o país cuja alfândega interceptou Joaquim Cruz por ele desembarcar dos EUA com uma mala cheia de pares de tênis (semi-usados) para doar a jovens da periferia brasiliense. Os agentes sustentavam que aquela quantidade tinha pinta de muamba. O maior nome em toda a história do atletismo pátrio (medalha de ouro nos 800m em 1984) deveria estar querendo lucrar com a revenda.
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Existe um dado bastante simples para qualquer leigo poder dimensionar o peso real de uma medalha olímpica: nada menos do que 77 países do planeta (de um total de 206 participantes) nunca conseguiram conquistar uma única delas, de qualquer cor.
COI precisa sair da bolha
Foi Adolf Hitler, em 1936, quem primeiro percebeu o imenso potencial de uma Olimpíada sobre um povo. No período da Guerra Fria que se seguiu ao conflito mundial a disputa por medalhas passou a se ancorar na rivalidade ideológica entre o comunismo e o Ocidente. O bloco soviético entendeu primeiro o valor de investir pesado em esportes individuais ? atletas com capacidade de abocanhar múltiplas medalhas. Em apenas cinco edições de Jogos a Alemanha Oriental, para citar um só exemplo, conseguiu acumular 409 medalhas, tendo por cobaias seus próprios atletas submetidos a brutais programas de doping.
Faça o teste: Qual o seu esporte na Olimpíada de Tóquio?
De lá para cá mudou o mundo, mudou o clima na Terra, mudaram os atletas. O que não muda é o valor de uma medalha olímpica como reconhecimento universal. Embora o Comitê Olímpico Internacional (COI) não endosse oficialmente a primazia do ouro sobre a prata e o bronze, é este o critério que consta no site da própria entidade ao ranquear os países. O resto do mundo segue a mesma norma. Exceto os Estados Unidos, único a ranquear cada país pela soma total de ouros, pratas e bronzes conquistados. Trata-se de uma discussão sem fim, com cada superpotência esportiva apontando motivos escusos no sistema de contagem do outro. Pelo menos da edição olímpica encerrada ontem a questão perdeu relevância, pois os Estados Unidos voltaram para casa tanto com o maior número de ouros (39) quanto com o maior total de medalhas (113). A China, emergente superpotência olímpica, galgou em segundo nos dois critérios (38 ouros, 88 no total) e o Japão em terceiro.
Espera-se que o mundo jamais voltará a ter uma Olimpíada como esta, de estádios e arenas reluzentes porém despovoados, tristonhos, e silenciosos. Tóquio-2020 demonstrou que passa da hora de o COI sair de sua bolha e se juntar aos problemas gritantes da humanidade. O planeta arde.
Fonte: O Globo