Onze minutos separam Beatriz Ferreira de uma medalha inédita para o Brasil no boxe feminino, seja de prata ou de ouro. É o tempo previsto, incluindo intervalos entre os três rounds, para durar a final olímpica contra a irlandesa Kellie Harrington, na madrugada de sábado para domingo, às 2h (horário de Brasília), em Tóquio. Parece pouco, mas pode ser uma eternidade para a brasileira, que acostumou-se a encurtar suas lutas com nocautes e vem sendo preparada há cinco anos, desde as vésperas da Olimpíada do Rio-2016, para suceder Adriana Araújo, bronze também no peso leve nos Jogos de Londres, na única medalha do boxe feminino brasileiro até hoje.
É capaz de a irlandesa, que enfrentará Bia pela primeira vez na carreira, também ficar com a impressão de que os minutos se arrastam: com estilo rápido e potente em proporções raras na modalidade, a brasileira quase sempre é um tormento para quem está no córner oposto até soar o gongo.
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Com 80 lutas em seu cartel oficial registrado pela Aiba (Associação Internacional de Boxe Amador), Bia soma 73 vitórias, 12 delas por nocaute técnico ? ou “interrupção de combate pelo árbitro? (RSC, na sigla em inglês), situação em que a adversária não tem mais condições físicas de seguir lutando. Atual campeã mundial no peso leve, até 60 kg, e número 1 do ranking da categoria, Bia chegou à Olimpíada de Tóquio como favorita justamente por não tomar conhecimento de quem está à frente. O que exige força, algo notável a um simples relance das lutas da brasileira, mas também técnica apurada.
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Suelen Souza, treinadora da Confederação Brasileira de Boxe (CBBoxe) para a seleção feminina, avalia que o talento de Bia para nocautear é incomum no boxe feminino amador, em que as atletas usam proteções de cabeça e a força muscular costuma ser menor, principalmente nas categorias mais leves. Para efeito de comparação, Harrington tem um cartel similar ao de Bia em número de lutas e igual número de vitórias, mas apenas uma por nocaute técnico.
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A treinadora, que acompanhou a preparação do boxe brasileiro antes da viagem a Tóquio, diz que o trabalho feito na reta final com Bia dedicou-se mais a corrigir detalhes técnicos que, segundo ela, também são desenvolvidos acima da média na brasileira. Todas as três vitórias de Bia na Olimpíada foram por decisão unânime. Na semifinal, contra a finlandesa Mira Potkonen, número 2 do mundo, Bia chegou a receber 10 a 8 de um dos cinco juízes no último round, placar dos mais expressivos.
? Nessa luta, a Bia mostrou que tem um bom contragolpe e entradas rápidas. Quando a adversária parava, ela atacava. Ou então jogava um golpe rápido quando a finlandesa estava entrando com a primeira mão. É preciso técnica, um tempo de golpe muito bom, para lutar assim ? afirma.
Para ilustrar o estilo de Bia, Suelen cita o que ela faz de diferente dos outros. A treinadora observa que rivais, como Potkonen, tentam manter grande volume de golpes, nem sempre com muita precisão. Já a escola cubana de boxe ? que ainda não permite mulheres no esporte, mas é referência entre os homens ? se notabiliza por golpes precisos, que procuram somar o maior número de pontos, mas nem sempre muito fortes.
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? Bia é uma nocauteadora nata. Em vez de combinar quatro, cinco golpes, ela trabalha para encaixar um mais potente e não desperdiçar. Para isso, trabalha muito o movimento de tronco e de perna. Mas também surpreende encurtando espaços e projetando sua potência, graças à técnica. No boxe feminino, é até mais comum trabalhar resistência do que a força, mas a Bia tem esse diferencial: é muito explosiva e mantém a constância nos três rounds. O boxe exige potência, velocidade e resistência, e a Bia une tudo isso ? detalhou Suelen.
Rival é mais alta
Filha do ex-pugilista baiano Raimundo Oliveira, o Sergipe, bicampeão brasileiro, Bia, hoje com 28 anos, começou no boxe ainda criança, mas acabou entrando tarde no circuito principal por ter sido suspensa pela Aiba, em 2015, por dois anos. A punição ocorreu por ter disputado um campeonato de muay thai, o que não é permitido pela entidade do boxe. Enquanto cumpria a suspensão, destacou-se em torneios locais, como os Jogos Abertos do Interior, e conquistou seu primeiro Brasileiro de boxe logo após ser liberada pela Aiba, em 2017.
No seu primeiro Mundial, em 2018, Bia perdeu na segunda fase para a sul-coreana Yeon-ji Oh, em decisão dividida. O título naquele ano ficou com Harrington. Em 2019, no melhor ano da carreira, Bia foi campeã no Pan de Lima e confirmou sua grande fase vencendo o Mundial, com direito a interrupção do árbitro na primeira luta. Harrington não disputou aquela edição.
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Atual nº 3 do ranking, a irlandesa inspira cuidados, segundo Suellen. Por ser oito centímetros mais alta do que Bia, que tem 1,62m, Harrington tende a trabalhar com jab e direto para manter a distância e evitar os golpes da brasileira. Mas a treinadora avalia que, se há alguém com domínio do ringue e do tempo, este alguém é Bia ? que costuma ressaltar, em entrevistas, o fato de estar “há cinco anos treinando para isso?.
? Ela provavelmente terá que se movimentar para encurtar o espaço e trabalhar com golpes de encontro, aproveitando os momentos em que a Harrington se aproximar para o ataque. A Bia já vem há algum tempo nessa escalada, o título mundial só deixou mais palpável a realidade de ela ser campeã olímpica. Não se cogitava outra hipótese.
Fonte: O Globo