“Sorria, você está nas Olimpíadas”. A mensagem escrita à mão num pedaço de papel e colada na porta parecia ser uma lembrança a si mesma. Era para estar ali que Simone Biles trabalhou um ano extra por causa da pandemia. Ela brindou seus milhões de seguidores – são mais de 5 milhões – com esse recado no stories do Instagram horas antes de ir à Ariake Arena, em Tóquio. Mas lá, ao pisar de novo na plataforma de salto, não conseguiu fazer o elemento esperado na mesa e desistiu da final por equipes pela sua segurança e pelo time, que levou a prata. Um dia depois, abriu mão do individual geral. O suspense continuou a cada dia. Desistiu do salto, das barras assimétricas e do solo. Na última hora, resolveu fazer a trave no último dia competição e ainda levou o bronze, sua sétima medalha olímpica.

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Aquela mensagem, no entanto, também carrega o peso de que teria de fazer o sacrifício que fosse pelo privilégio de ser uma atleta olímpica prestes a fazer mais história no esporte mundial. Aos 24 anos, ela tem a experiência suficiente para saber se motivar e aos demais. Num dos dias entediantes em Tóquio, antes das competições, Biles abriu seu Instagram para responder a qualquer pergunta. Já foi logo avisando: não gosta de opiniões não solicitadas nem de que sempre falem o quanto ela é baixinha – 1,42 -, como se ela não soubesse.

Contou que levou pouco mais de um ano para acertar o Yurchenko Duplo Carpado – o salto que só homens fizeram e que ela faria na apresentação sobre a mesa. Precisava acreditar em si para fazer o elemento extremamente difícil, e alertou ao fã que nada viria de forma fácil. A outro, explicou que não há uma fórmula para se tornar mais confiante. Cada um encontrará o próprio jeito, mas é necessário fazer coisas que podem ser assustadoras e lhe tirem da zona de conforto.

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De certa forma, foi exatamente o que Biles fez. Assim como precisa coragem para voar a mais de três metros de altura, também é necessário coragem para dizer não. Para afirmar que não estava mais confiante dentro de um ginásio, independentemente do que os outros diriam. E reconhecer que não colocaria a vida em risco por mais uma medalha de ouro.

? É um posicionamento histórico. Aquela frase (postada pela ginasta) me vem muito num sentido de “você não pode estar triste, você está aonde muitos gostariam de estar. Então, ignore seu sofrimento, passe uma imagem positiva e ganhe. E existe a questão de assumir que não está bem, mas é acima disso.  Ela liderou a competição até então, já mostrava que poderia ganhar e mostra sua grandeza como uma das grandes de todos os tempos. Ela sair nesse momento é  abrir um espaço para uma discussão que vai além da ginástica e impacta no alto rendimento esportivo ? analisa Victor Cavallari, especialista em psicologia do esporte.

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Ela sabe o que muitos diriam da sua decisão e estão dizendo nas redes sociais. Naquele momento de interação com os fãs no quarto da Vila Olímpica, confessou o que queria que as pessoas soubessem sobre ela: “Eu sou humana e tenho sentimento também. É fácil vomitar ódio em mim nas minhas plataformas, mas estamos aqui apenas tentando fazer nosso melhor”.

A humanidade de Biles também consiste em escancarar os problemas de saúde mental no ambiente de alta performance. Não à toa, uma das recomendações de filme aos fãs foi o documentário sobre Naomi Osaka, outra super atleta que, recentemente, abandonou o Grand Slam de Roland Garros por motivo semelhante. 

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Poderia ter recomendado “Atleta A”, documentário sobre o chocante caso de abusos sofridos pelas ginastas americanas, incluindo Biles, pelas mãos do então médico da confederação americana de ginástica  Larry Nassar, condenado a  mais de 300 anos de prisão.  Após o episódio, ela aprendeu a usar sua voz. Reverberou no ambiente digital os desmandos na confederação de ginástica, que acobertou o caso Nassar. Dirigentes caíram por causa das palavras da campeã, que cobrou atitudes internas. O local de treino onde médico abusava das meninas, o Karolyin Ranch, teve o contrato encerrado dias depois da sua contundente declaração pública.

Nas publicações mais recentes nos stories da atleta, ela replicou palavras de apoio que recebeu de diversas personalidades do meio. A campeoníssima Nadia Comaneci e o maior medalhista olímpico, o nadador americano Michael Phelps, saíram em defesa da atleta. Ex-ginastas também exaltaram  a atitude dela, como a americana Nastia Liukin e a técnica Andrea Orris, que fez alusões a tudo pelo que ela passou, no post reproduzido abaixo: 

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“Estamos falando da mesma garota que foi molestada pelo médico da equipe durante toda a sua infância e adolescência,que  ganhou o campeonato mundial com pedra nos rins, colocou seu corpo em um ano extra de treinamento durante a pandemia, adicionou tanta dificuldade às suas rotinas que os juízes literalmente não sabem como avaliar suas habilidades (porque) estão muito à frente de seu tempo. Tudo isso enquanto mantém suas responsabilidades com seus contratos comerciais, a mídia, vida pessoal, etc. E algumas pessoas ainda dizem: ‘Simone Biles é mole. Ela é uma desistente.’ Essa menina suportou mais traumas aos 24 anos do que a maioria das pessoas jamais passará na vida”.

Lutas caras à ginasta

Desde então, Biles tem encampado algumas lutas que lhe são caras, como o apoio ao Black Live Matters e ao movimento LGBTQIA+, além de pedir voto para o democrata Joe Biden nas últimas eleições. Sonha, no futuro, poder ter certeza de que todas as crianças em orfanatos e lares adotivos estejam seguras e bem cuidadas. Assim como ela própria tem sido desde que foi adotada pelo avô materno Ron  e a mulher dele Nellie, aos três anos.

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? As situações retratadas lá podem ajudar a entender um cenário de muito sofrimento psicológico das atletas da ginástica americana…Esse alerta para a saúde mental está sendo dado há décadas. Mas vem sistematicamente sendo ignorados pelas instituições. Por exemplo, há uma sala de preparação mental da delegação brasileira. Com estrutura, profissionais excelentes, mas isso é pra ponta do iceberg. É algo estrutural mesmo, cultural. Criou-se uma ambiente esportivo de alto rendimento que não é saudável ? diz o psicólogo. 

Biles encontra pouso seguro, para tentar se blindar do ambiente por vezes tóxico, na família, nas amigas de seleção e no namorado, o jogador da NFL Jonathan Owens, do Houston Texans, com quem começou a namorar após trocar mensagens pelo Instagram, sempre ele. No Japão, encontra apoio das companheiras de equipe, sobretudo de Jordan Chiles, considerada uma amiga-irmã pela ginasta e presença constante em suas publicações. Lá em Tóquio, as ginastas fizeram a própria cerimônia de abertura na Vila Olímpica – a seleção não desfilou para evitar aglomerações por causa da Covid-19 e por que tinha treino, como explicou aos internautas.

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 Todas abraçaram a decisão da companheira, que sofreu durante a apresentação delas na final por equipes e em todas as outras finais individuais. O sorriso no pódio, com a medalha de prata, e a dancinha com Jordan mostram uma Biles satisfeita por estar ali, mas não bem o suficiente para cravar seus mortais e girar inúmeras vezes no ar. Ela sabe o quão perigoso é perder a orientação espacial e não conseguir acertar os saltos. Explicou detalhadamente, numa sequência de stories com imagens depois apagadas para não dar munição aos técnicos adversários, o que são os “twisties”, quando a ginasta se perde no ar.

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A família a acompanha virtualmente. No dia da classificatória, lá estavam eles da sala de casa, no Texas, vendo Biles conquistar as vagas nas finais por uma pequena tela colocada na lateral do ginásio. No namorado, que comemorou 26 anos na última semana e ganhou muitas declarações de amor da ginasta nas redes sociais, encontrou um mundo novo. Fora da ginástica e da fama. Apesar de ser atleta, e compreender as limitações impostas a uma esportista de alto rendimento, Owens se encantou por uma ginasta que, por acaso, também vive no Texas. Não sabia quem ela era, muito menos que era famosa. Desconfiou quando viu seus milhões de seguidores no Instagram, mas só acreditou quando ela foi  reconhecida na rua. Hoje, ele demonstra apoio incondicional às decisões da namorada celebridade.

No amor, Biles diz ter encontrado a rede segura que estará lá quando cair. Talvez, neste momento, o lugar preferido dela não seja num ginásio. Mas ao lado de Owens numa praia paradisíaca na Tailândia, de férias, degustando Kiwi dourado e apreciando uma mimosa. Seus 5,4 milhões de seguidores sabem do que se trata.