Estou no Japão para brigar por dois ouros. Muitos dirão que sou ganancioso, mas eu explico: se eu não sonhar com o ouro, vou sonhar com o quê? É para isso que treino todos os dias. Não ia sair do Brasil para o outro lado do mundo para menos. Ainda mais depois de tudo que passei no ciclo, que foram cinco anos, por causa da pandemia. Mas também o que vivi. Além disso, existem várias pessoas que não esperam outro resultado de mim. Não é pressão. É fé no que fiz, fé no meu trabalho, confiança em mim.

Muitos me conhecem, sou o Isaquias Queiroz, baiano da comida temperada, feliz na canoagem e na dança, dono de três medalhas olímpicas em uma única edição de Jogos, no Rio, em 2016. Um recorde para o Brasil. Sou pai de Sebastian, de três anos, que me ajudou a ser menos encrenqueiro. Casado com Laina, que fez de tudo por mim para eu me dedicar a Tóquio. Também sou filho e irmão. Dona Dilma é paranoia, sempre cuidando de mim, foi pai e mãe de 10 crianças. Quando eu tinha quatro anos, meu pai morreu. Tenho poucas lembranças dele e talvez seja melhor assim… Ia sofrer demais de saudade de coisas vividas. Queria que todos eles estivessem no Japão comigo.

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Confesso que tenho um pouco de medo. Não sei o que vou viver em Tóquio por causa do coronavírus. Queria festa, é o meu jeito. Mas não vou poder nem conviver direito com as pessoas, abraçar, conversar… A tensão é grande, mas quando entro na canoa, não tem para ninguém. Estou no auge da minha carreira. E refiz toda a programação que me levou ao pódio no Rio. O povo sabe que sou meio maluco, mas não fujo da briga.

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Não gosto muito de lembrar do meu início no esporte, quando larguei a Bahia para ir para a seleção. Era 2009, tinha 15 anos. Estava perto do Natal e Ano Novo. Fui morar na casa de uma senhora, em São Vicente, que nem conhecia, num quarto sem cama, com colchão no chão, seis atletas, sem ar condicionado nem ventilador. Caminhava 20 quilômetros para poder trocar um tíquete de transporte por dinheiro para comprar pasta de dente, desodorante. Fiquei mais de um ano sem falar com a minha mãe porque não tinha celular. Não ganhava salário, sequer estudava. Fui forjado na dificuldade e sou assim. Não me arrependo de nada. Isso me fortaleceu como atleta, me fez brigar com a Confederação Brasileira de Canoagem e hoje sou representante dos atletas na entidade por melhora para todos.

Pacto por Morlán

Demorou alguns anos para eu tirar esse peso das minhas costas, essas lembranças ruins. Pingamos entre Rio e São Paulo e nossa vida só foi melhorar com a chegada de Jesús Morlán, em 2013. Ele se importou com o ser humano. Estávamos com o salário atrasado, tristes, desmotivados. Ele foi lá e resolveu. Essa é a melhor parte da seleção, minha vida na concentração em Lagoa Santa, desde 2014.

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Todo mundo já sabe que em 2018 ele se foi, morreu de câncer. Também já falamos de um pacto para ganhar a décima medalha olímpica para ele. Ele conquistou oito (somando Espanha e Brasil). Mas muitos não devem saber que mesmo longe, ele me guia. Está com a gente em cada treino, nas ideias, em tudo.

Todo o treinamento feito de 2013 a 2018 está guardado. Jesús era extremamente sistemático e tinha modelo de treinamento baseado em metodologia própria. Os treinamentos fortes, intensos, que são direcionados aos torneios, são usados até hoje. Comparamos tempos e quantidade de remadas em distâncias e épocas do ano específicas. Ele tinha tudo isso em um computador sem conexão com a internet. Era medo de perder o material e de invasão. Antes de morrer, pediu que copiassem o conteúdo e destruíssem o computador. E o Lauro de Souza Júnior, que assumiu os treinos, seguiu esse desejo.

Conheço o Lauro desde 2007, quando me ajudou no campeonato brasileiro cadete, em Cascavel (PR). Foi o meu primeiro nacional, fora da Bahia. O Lauro foi o auxiliar do Jesús desde o início, em 2013. No final da vida do Jesús, Lauro já estava à frente dos treinos. E em 2019, soube administrar muito bem a nossa canoa e ganhamos um ouro e um bronze no Mundial. Fui campeão mundial pela primeira vez nos 1.000m com ele no comando.

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O Jesús mudou a minha vida ? de atleta e como pessoa. Quando ele chegou ao Brasil, a gente brigava demais. Não gostava das broncas, é meu jeito. Pensava em ir embora, mas ele sempre tinha razão. Eu era muito criança. Amadureci com ele, todos falam isso. Sei disso. Nossa última briga foi em 2014, por causa de uma habilitação vencida. Eu queria comprar carro sem ter o documento.

Ao mesmo tempo, eu era o que mais zoava com ele, sem medo. Quando ele começou a ficar doente, foi muito impactante para nós. Ele não queria passar a sensação de uma pessoa fraca, mas era isso que eu via. Essa doença come a gente vivo, mesmo assim ele lutou bravamente até o final.

Relação com o filho

Meu filho, Sebastian, completou este processo de amadurecimento. Menino muito elétrico e com nome do meu rival (o alemão Sebastian Brendel). Assim, lembro dele todos os dias, não o esqueço um minuto só.

Vou contar uma coisa que não costumo falar: remo barco individual e de equipe, com o Jacky Godmann. Mas não sou fã de barco de equipe. Eu sempre quis fazer carreira solo. E barco de equipe é um casamento. Muitas vezes um tem mais reconhecimento que o outro e fico constrangido com isso. Tanto o Erlon, meu parceiro na última Olimpíada, quanto o Jacky e toda a nossa equipe sabem da minha opinião.

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É que mesmo com tantas medalhas já conquistadas, eu ainda quero me tornar um ídolo nacional. O que para tantos é muito, para mim é pouco. Sei que ainda falta. Não por causa dos resultados. Só em Campeonatos Mundiais tenho 16 medalhas. Quero reconhecimento. Também não falo de dinheiro. Eu vivo bem, graças a Deus. Quero mesmo é que um baiano, negro, seja a maior estrela deste Brasil. Respeito todos os esportistas, mas o baiano aqui é metido. Até Paris eu vou conseguir. Isso só vai depender de mim, do meu treinamento. E depois, escrevam aí, vou ajudar a formar atletas.

Se hoje falo assim, com tanta segurança, foi por causa do Jesús. Foi ele que me fez um campeão, atleta de verdade, responsável. E hoje, não tem como não lembrar do que ele sempre me falou quando me levava ao píer para a competição: “Solte a fera?.