Ainda na clínica onde acabara de ser informada que havia rompido pela terceira vez o ligamento cruzado anterior do joelho direito, em junho de 2019, e precisaria passar pela terceira cirurgia no local, Rebeca Andrade, sem desespero, disse: “Eu vou operar e vou voltar. Podem ficar tranquilos?. Era a ginasta de 20 anos à época que tranquilizava médicos e técnicos. Afinal, ali estava a joia da ginástica brasileira, que ficaria fora de combate por cerca de oito meses a um ano da data original dos Jogos Olímpicos de Tóquio.

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Por mais talentosa que fosse, uma ginasta retornar ao mesmo nível de antes após uma sequência de três reconstruções de ligamento em quatro anos era, na opinião de gente especializada, pouco crível. Ninguém havia visto. Pois Rebeca subverteu a lógica e voltou. Melhor ainda. Mesmo com a parada por causa da pandemia, precisou de apenas uma competição, praticamente às vésperas da Olimpíada, para conquistar a vaga em Tóquio.

Bastou somente um dia em solo japonês para confirmar que é uma das atletas mais completas no esporte. Nesta quinta-feira, sem Simone Biles, que preferiu preservar sua saúde mental e está fora, é uma das favoritas no individual geral. O segundo lugar na classificação, com uma nota próxima à americana, lhe conferiu tal status.

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Até chegar a esse posto, que pode garantir uma medalha inédita para a ginástica feminina, o retorno da atleta passou por duas recuperações: física e mental. A primeira, Rebeca já sabia de cor: cirurgia, fisioterapia, primeiro treinos leves, pesados em seguida e, enfim, a competição. A segunda era mais complicada. A atleta precisava retomar a confiança de voltar a saltar no solo e sobre a mesa sem medo do impacto no joelho castigado. O primeiro dia de competição, com voos altos e cravadas em ambos os aparelhos, deixou claro que não será por falta de coragem que a medalha não virá.

A resiliência nata encontrou o apoio coletivo da família, amigas de seleção e da comissão técnica.

? O COB abraçou a recuperação dela de uma forma total. Deu todo suporte na parte física e psicológica, pois sabe, com todo o respeito às outras, que ela é a melhor ginasta do Brasil, com potencial para ser a melhor do mundo ? diz Ângelo Sabino, um dos técnicos do Flamengo, onde Rebeca treina com Flávia Saraiva.

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Se Biles estivesse no jogo, na sua melhor forma fisica e mental, ela Biles seria imbatível. A prata teria gosto de ouro. Com a atuação aquém do esperado da americana e a decisão de não participar da prova, os holofotes também se voltarão para a ginasta que encantou com seu “Baile de Favela? na classificação.

Preparo mental

Quem a conhece não teme que se tornar uma possível referência na prova possa boicotá-la. O preparo mental para ser capaz de voltar no melhor nível a tempo dos Jogos serve de base às demais demandas emocionais. Basta fazer suas séries, que não terão novidades, com precisão ? ainda pode ganhar mais pontos se encaixar elementos que deixou de fazer nas paralelas, por exemplo, e corrigir alguns erros na trave para aumentar a pontuação final.

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? Esses Jogos Olímpicos não estão sendo um sonho, coloquei como objetivo. Se tivessem sido somente um sonho, não estaria aqui hoje. Porque sonho foi em 2016, os meus primeiros Jogos. Temos que ir com calma ? diz Rebeca, que terá como principais concorrentes a outra americana Sunisa Lee e as russas Angelina Melnikova e Vladislava Urazova. ?Em alguns aparelhos consegui fazer o meu máximo e é bom saber que posso melhorar em outros, porque isso me dá mais força e garra para fazer melhor.

A disputa será acirrada. No atual ciclo, a arbitragem está mais rigorosa na execução. Em comparação com o Rio-2016, as notas estão mais baixas, sobretudo no solo e na trave. A pontuação total de Biles este ano, por exemplo, não pegaria sequer pódio ? há cinco anos, levou o ouro com 62.198. Mas deve ser os 57.731 da classificação que vão balizar a final do individual geral. Muito acima disso, só a própria Biles seria capaz. Mas Rebeca pode chegar perto.