Critérios pré-estabelecidos, mas avaliados a partir de cinco pontos de vista inevitavelmente subjetivos. O cerne da polêmica que envolveu a semifinal do surfe na Olimpíada de Tóquio, na qual o brasileiro Gabriel Medina foi derrotado pelo japonês Kanoa Igarashi, é também uma discussão antiga no esporte, que vem desde muito antes de sua nova fase como modalidade olímpica. Especialistas ouvidos pelo GLOBO enxergaram problemas na escolha e atuação dos juízes do surfe na praia de Tsurigasaki, mas apresentaram dúvidas sobre a possibilidade, por exemplo, de incremento nos recursos de vídeo para auxiliar as notas.
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Após ser eliminado por Igarashi, representante do país-sede dos Jogos, Medina disse que há coisas que “não dá para entender”, referindo-se às notas atribuídas pelos juízes da bateria. O diretor técnico da modalidade na Olimpíada, por sua vez, rechaçou a hipótese de que o brasileiro tenha sido prejudicado e disse que “o resultado está certo”. Afinal, quem tem razão?
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A principal crítica levantada sobre a avaliação dos juízes foi a atribuição de uma nota 9,33 para Kanoa Igarashi na reta final da bateria, suficiente para o japonês ultrapassar Medina e avançar à decisão, quando seria derrotado por Italo Ferreira. Igarashi fez uma manobra conhecida como “aéreo”, em que o surfista decola e gira no ar, devendo cair de pé na prancha. O japonês usou as mãos para reter a prancha junto aos pés, o que levantou questionamentos sobre o grau de dificuldade da manobra. Medina, que fez aéreos sem segurar a prancha, recebeu notas 8,33 e 8,43, um ponto abaixo do japonês.
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Segundo o Comitê Olímpico Internacional (COI), cinco critérios são levados em conta na avaliação: nível de dificuldade da manobra e da onda; inovação no tipo de manobra ? um aéreo, por exemplo, é valorizado neste quesito; variedade de manobras ao longo da bateria; combinação e progressão de movimentos numa mesma onda; e, por sim, velocidade, força e “flow”, isto é, a plasticidade da manobra.
Os juízes podem consultar o replay dos lances se tiverem dúvidas sobre algum movimento. Em geral, as notas são distribuídas no minuto seguinte à manobra. Marcelo Andrade, ex-dirigente da Associação Brasileira de Surf Profissional (ABRASP), lembra que o recurso de análise de vídeo já está presente no circuito mundial de surfe há mais de uma década, e foi aperfeiçoado ao longo dos anos. As câmeras, em geral, são posicionadas no mesmo ângulo dos juízes em relação ao mar, e reproduzem replays não só para atribuição de notas mas também para a classificação de prioridade em cada onda.
Para Andrade, um ponto que merece maior atenção é a escolha dos juízes. Na Olimpíada do Japão, a seleção foi feita pela Associação Internacional de Surfe (ISA, na sigla em inglês). Parte dos juízes fazem parte regularmente da Liga Mundial de Surfe (WSL), enquanto outros costumam atuar fora deste circuito de elite, em torneios da própria ISA.
? Até o juiz precisa estar treinado para uma competição como essa. Os juízes da WSL têm um trabalho contínuo, enquanto os da ISA possivelmente ficaram muito tempo fora de competições, por conta da pandemia, e só tiveram a seletiva olímpica em El Salvador, há um mês ? afirma Andrade. ? Se fosse seguir o critério da WSL, a onda do Medina foi maior que a do Igarashi e ele fez uma rotação mais difícil, de backside (costas) e sem a mão na borda da prancha. Colocar a mão na borda não penaliza o atleta, mas mostra que ele usou um subterfúgio para concluir a manobra. Na Olimpíada, os juízes parecem ter valorizado manobras aéreas e progressão. A verdade é que quem está na praia pode ter uma visão diferente de quem vê pela TV, mas todo juiz tem que fazer um paralelo com as outras ondas do campeonato na hora de avaliar, para manter um parâmetro.
Juiz japonês ficou fora
No total, sete juízes ficaram responsáveis por avaliar as notas dos atletas nas baterias olímpicas na praia de Tsurigasaki: o brasileiro Luis “Luli” Pereira, o japonês Masato Kato, o português Nuno Trigo, o francês Bruno Truch, o australiano Benjamin Lowe, o neozelandês Dan Kosoof e a americana Tory Gilkerson. Pereira, Trigo e Lowe, por exemplo, estavam na relação oficial de árbitros da WSL divulgada em 2018.
A cada bateria, cinco desses juízes eram colocados em ação, e tinham que dar notas para todas as ondas surfadas. A maior e a menor nota eram descartadas, e o resultado era obtido a partir de uma média das três notas restantes. Não havia restrições para um juiz atuar numa bateria com um atleta da mesma nacionalidade, mas o árbitro japonês não atuou na bateria de Medina e Kanoa. Já o brasileiro, sim.
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Nesta semifinal, julgada por Pereira, Daniel Kosoof, Benjamin Lowe, Bruno Truch e Nuno Trigo, o surfista japonês chegou a receber uma nota 9,8 do árbitro neozelandês no polêmico aéreo. A mesma manobra foi avaliada em 7,5 pelo árbitro português. Por serem a maior e menor nota, ambas foram descartadas.
O brasileiro Luli Pereira deu nota 9 para esta manobra de Kanoa Igarashi, avaliação superior a todas as outras notas atribuídas por ele a Medina. Já o francês Truch e o australiano Lowe deram 9,5.
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Paulo Motta, ex-surfista e juiz brasileiro, afirmou ao GLOBO que os juízes avaliam fatores que são mais bem interpretados “in loco”, como a dificuldade do mar em determinados pontos e a interação dos atletas com as ondas. Motta avalia que, embora o replay seja conferido por juízes nos momentos-chave das baterias, uma análise puramente a partir do vídeo pode distorcer avaliações.
? Em geral, os juízes-chefes podem exibir não só o replay da onda que acabou de acontecer, mas também de ondas anteriores que tenham sido bem avaliadas, para que todos os juízes sigam esse parâmetro. Mas se você fica voltando o tempo todo no replay, começa a sedimentar uma opinião a partir de uma realidade frágil, porque é subjetiva. No vôlei, você pode dizer se a bola saiu ou não. No surfe, a própria plataforma de competição é variável ? avaliou Motta. ? Acredito que foi um resultado muito difícil de ser dado, mas não vi como algo absurdo.
Regras mais específicas
Para o surfista Rico de Souza, recorrer mais a recursos de vídeo, como o emprego de um “VAR” inspirado no futebol, ou estabelecer critérios mais específicos seriam alternativas para diminuir a discussão sobre notas.
? Vimos nitidamente que o aéreo do Medina foi mais rápido, seguro, sob controle e sem a mão na borda da prancha. O Kanoa Igarashi me pareceu que usou a mão. Acredito que a forma de acabar com as polêmicas seria usar um “VAR”, ou então adotar regras mais específicas ? afirmou Rico, que ressalta, no entanto, a dificuldade dos julgamentos:
? Eu já julguei campeonatos e não é fácil. Pode haver má interpretação ou alguma falta de atenção dos juízes na hora. O que não dá é para ter discrepância muito grande, um juiz dar quase 10 e outro dar 7,5 para a mesma onda. Isso não faz sentido.
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O corpo técnico contava ainda com dois juizes-chefes, Richard Pierce (EUA) e Glen Eliot (Austrália), um diretor de competição, o brasileiro Marcos Bukão, um diretor técnico, o americano Erik Krammer, e ainda dois juízes de prioridade, o neozelandês Ian Buchanan e o brasileiro Marcelo Miranda, responsáveis por avaliar qual atleta tinha a preferência a cada momento. Após o término das competições, Krammer disse entender as diferentes opiniões, mas afirmou que a diversidade de pontos de vista faz parte da “beleza e complexidade” do surfe.
Em resposta a torcedores que fizeram cobranças nas redes sociais para que fosse exigida uma “revisão” das notas na semifinal, o perfil oficial do Time Brasil no Instagram lembrou que o regulamento do surfe não permite “protesto contra as notas dadas pelos juízes”. Só é permitido contestar a ordem de prioridade ou eventuais problemas na cronometragem, ou quando os juízes deixam de ver que uma onda foi surfada.
Não foi só Medina quem saiu na bronca do Japão. O australiano Julian Wilson, derrotado pelo brasileiro nas quartas de final, questionou os organizadores da competição ao fim da bateria alegando que Medina havia surfado uma onda fora da área delimitada. A organização, porém, esclareceu a Wilson que a delimitação serve apenas como referência de pontos em que os juízes conseguem ver plenamente as manobras, e que não há veto a pegar uma onda fora desta área ? há apenas o risco de que os árbitros não enxerguem.
Fonte: O Globo