Cheguei em 2021 no topo do ranking mundial, o número 1 do mundo. E digo com toda franqueza: nunca tive talento natural, não nasci com “aquela estrela?, mas sabia que se me dedicasse muito teria chance de conseguir grandes resultados. Cheguei aqui por causa do meu esforço e paixão pelo mountain bike. Conquistei praticamente tudo, mas quero mais e mais… Hoje vou atrás do pódio olímpico.

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Qual atleta não tem dúvidas em sua carreira? Eu tive tantas… E a dúvida traz um sentimento perigoso para quem está no alto rendimento. Quando há indecisão, quando a mente está dividida, o corpo sente, o corpo sabe. Você busca a melhor versão do seu físico, mas a força, 100% da força, não acompanha, parece que é drenada para outros caminhos.

 

Acredito que, nessas condições, o atleta não desempenha sua capacidade total e quando se vê diante de um penhasco, hesita em mergulhar de cabeça. No esporte, é preciso se jogar de cabeça milhares de vezes, sem saber quando será a última e sem olhar para o que tem lá embaixo. É preciso ter confiança para encarar o vazio e ir o mais fundo possível. Eu balancei em 2017, num passado recente. Foi o ano mais emblemático da minha carreira como atleta internacional. Foi o ano de vencer barreiras, entregar resultados e conquistar meu espaço, o ano em que tive menos oportunidades de competir e, por isso, criei metas ambiciosas. Foi por causa dele que estou aqui, em Tóquio, com possibilidades reais de ser medalhista na minha modalidade, o ciclismo montain bike.

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Terminei o ciclo da Rio-2016 em baixa. Havia sido o 23º colocado e passei de 15º para 27º no ranking mundial. Dei vários passos para trás. Em boa parte do ano, não entreguei bons resultados. Tive uma lesão importante na coluna e durante a Olimpíada, um pequeno estiramento na musculatura que sustenta a coluna. Precisei me afastar por dois meses, tempo que nunca havia me desligado da bicicleta, nunca mesmo, desde os 8 anos (além dos treinos e das competições, gosto de andar de bicicleta, passear e curtir). Foi um momento de reflexão e questionamentos.

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Ano pós-Olimpíada, geralmente, é frio, vazio. Depois de ter ingressado em uma das melhores equipes do mundo, a Cannondale, com contrato longo, me vi em renegociação difícil. Tinha apenas um ano garantido e precisava entregar resultados. Não faltou empenho físico, fui aplicado, rigoroso. Mas a cabeça ia a mil, as dúvidas rondavam. Já tinha meus 28 anos e havia dedicado a minha vida ao esporte em tempo integral. Para onde estou indo? Como tocava minha carreira? Eu vivi a instabilidade do esporte de alto rendimento no seu ápice. Não tinha um currículo grosso para me dar ao luxo de ficar sem resultados. Se isso acontecesse, provavelmente, seria o fim da minha carreira de alto rendimento.

 

Em 2017 eu tive de aprender, na marra, a isolar a minha mente, assumir os riscos e me jogar de cabeça no penhasco. Sabia que treinava mais do que os adversários, mas não chegava na frente deles. E toda vez que isso acontecia era uma chuva de opiniões, vem pitaco de tudo quanto é lado ? de quem quer te ajudar e de quem não quer. Sempre absorvi tudo, mas em 2017 me blindei. Bati no peito e assumi a responsabilidade integral das minhas ações. Ninguém definiria mais quem eu era nem o que eu precisava ser. Isso não significou que rejeitei colaborações. Reunia as informações e, sozinho, montava meu quebra-cabeça.

Nessa pressão absurda, demorei a pegar a ladeira. Meu primeiro semestre foi bom, mas não espetacular. Não mostrei que seria um top-5 do mundo. Foi apenas no segundo semestre que comecei a entregar mais e mais e mais. No Mundial, perdi uma medalha por muito pouco, quando fiquei em quarto na Austrália, uma surpresa, e virei o ano em quinto no ranking mundial. A segurança no trabalho tinha voltado e senti uma liberdade incrível.

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É inacreditável imaginar que depois do que passei em 2017, teria um ano de bonança ?mas ele veio e com um arco íris. No ciclismo, o campeão mundial tem o direito de usar a famosa rainbow jersey, a lycra branca com listras coloridas. É o maior símbolo de conquista dentro do universo ciclístico. E eu não sosseguei até colocá-lo no peito.

São cinco faixas coloridas horizontais: azul, vermelho, preto, amarelo e verde. As mesmas cores da bandeira olímpica imaginadas pelo Barão de Coubertin em 1913 e que representam os cinco continentes do planeta. Fui campeão mundial na Itália, de maratona, e a camisa era minha. E depois de obter as listras, você nunca as perde. Todos os campeões mundiais podem usar as listas em punhos e golas, enquanto o campeão mundial daquele ano assume a camisa. Hoje, quando eu olho para os meus punhos eu sei quem eu sou.

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Entrei em 2018 para bater as minhas metas e alcançar meus sonhos. Agora, porém, os sonhos eram realidades possíveis. E isso é extremamente poderoso. Traçava metas e ia batendo. Uma atrás da outra. Ganhei a primeira etapa de Copa do Mundo (short track) da carreira e fechei o ano em segundo no ranking. Provei para mim que minhas escolhas foram certeiras. E os rivais perceberam isso: passei de “esse cara é bom, para esse cara pode ser o melhor?. Como me senti? Leve e feliz.

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Outras conquistas, não menos importantes, fazem deste ciclo olímpico especial. Em 2019, meu ano de consolidação, fui o terceiro colocado geral na Copa do Mundo, o ciclista que mais subiu no pódio destas competições: dez em 14 eventos. Depois, em 2020, venci pela primeira vez o short track (XCC) e o cross country olímpico (XCO), a dobradinha, na República Tcheca. Confiei no meu instinto e me concentrei em uma subida específica, no fim da prova. Não treinei no dia de intervalo, mas fiz aquela subida inúmeras vezes: decorei onde tinha raízes, onde minha roda tinha de passar. Algo me dizia que era lá que teríamos a definição do campeão. Dito e feito. Entrei nessa subida em terceiro e estava na frente na reta final.

Não sou mais o número 1 do mundo. Isso é efêmero mesmo. E não me importo. Porque o número que valerá é o da esquerda na tabela: o da classificação em Tóquio.