Os insultos direcionados aos três jogadores ingleses que perderam pênaltis na final da Eurocopa expuseram o quanto o futebol ainda é um ambiente vulnerável e permissivo. As demonstrações hediondas de racismo aqueceram discussões sobre a violência nas redes sociais, terreno em que delinquentes se sentem protegidos, por vezes anônimos.

Mas o futebol fez pior. Historicamente, transformou os estádios num ambiente similar ao das redes, depositário de todo o lixo produzido por patologias da sociedade. Como se não bastasse o abuso on-line, não vencemos o abuso presencial, naturalizado sob a justificativa da paixão. Ocorre que vivemos, por mais paradoxal que pareça, uma espécie de oportunidade única, uma janela inédita para que se crie um novo marco, um novo pacto para o novo normal.

Em meio à tragédia de proporções globais, a pandemia pode ter dado uma nova chance ao futebol de se reconstruir sob novas regras, rever os pactos que permitiram criar ambientes tóxicos nos estádios, locais em que racismo, homofobia, misoginia e outras formas de violência física e moral são socialmente aceitas, toleradas. É mesmo preciso que o futebol seja o ambiente em que se descarregam as frustrações pelas derrotas inerentes à vida, pela desigualdade social, por todo tipo de frustração?

Sempre que se propunha uma reforma, uma mistura de ceticismo com conformismo e até condescendência apontava para uma cultura enraizada. O debate descambava para o pobre argumento de que mudar tal ambiente exigiria acabar com o futebol e começar de novo. Pois bem, faz um ano e meio que os estádios estão fechados e, irresponsabilidades à parte, parece claro que não será possível conter por muito tempo a pressão pela reabertura. Não estamos diante de um “começar de novo??

No lugar de simplesmente reabrir as portas com a urgência até compreensível de instituições ávidas por reaverem receitas perdidas, o futebol brasileiro precisa convidar sua gente a reocupar um lugar novo, um novo ambiente, sob um novo pacto.

A reabertura dos estádios precisa ser precedida, além do rigor com as questões sanitárias, de uma campanha envolvendo clubes, atletas, federações e demais atores. Se nos aproximamos de um novo normal, em que se espera dos cidadãos novas condutas, é hora de desfazer a percepção do futebol como um mundo à parte. É preciso sinalizar claramente que não é mais cabível ou aceitável, em pleno 2021, que jogadores de futebol, muitos deles crescidos sob as mesmas injustiças sociais que estão na origem de boa parte dos comportamentos abusivos e até criminosos vistos nos estádios, sejam obrigados a exercer suas profissões sob ofensas e abusos de toda ordem. E isto vale para os campos, mas também para as invasões de locais de trabalho, os ataques a ônibus…

É preciso acoplar a reabertura das arquibancadas a uma reforma da relação entre a torcida e os profissionais. É possível fazê-lo sem prescindir da festa, da paixão, do pulsar dos estádios. O futebol seguirá fabricando a alegria e a tristeza, que são inerentes ao esporte. Mas o reencontro precisa, finalmente, inaugurar uma era de respeito.