A edição de Tóquio dos Jogos Olímpicos será emblemática, não só devido a pandemia do coronavírus e suas inúmeras restrições. O mundo verá, pela primeira vez, uma atleta trans em ação na principal competição esportiva. Até agora, o rosto desse momento simbólico, que pode redefinir paradigmas nas questões de gênero, é o da neozelandesa Laurel Hubbard, de 43 anos, que teve vaga confirmada no início do mês no levantamento de peso. Outras quatro atletas ainda têm chances de classificação.
A inclusão de atletas transgêneros no alto rendimento, no entanto, está longe de ser um assunto encerrado. A edição olímpica precursora certamente vai ampliar o debate que ainda gera dúvidas, desconfianças e tem um forte teor político. Também ajudará a trazer luz, de forma empírica, a uma das grandes questões do assunto: há ou não ganho de performance nos casos das mulheres trans em relação às cisgêneros?
Nenhum especialista é capaz de bater o martelo sobre o assunto. Não há estudos em larga escala ? até por ser algo recente no esporte ? que consiga apontar vantagens em qualquer ocasião ou que tenha achado parâmetros determinantes para que seja mantido o equilíbrio esportivo.
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Hubbard, por exemplo, competia no levantamento de peso entre os homens até 2012. Há quatro anos, conquistou o vice-campeonato mundial e hoje é a sétima colocada no ranking na categoria +87kg. As marcas da neozelandesa, como atleta trans, variam de 270 a 280kg, o que a mantém entre as 10 melhores. Mas sem a presença de algumas das principais competidoras da Coreia do Norte ? não vai participar dos Jogos ? e da Rússia ? por suspensão ? que levantam acima de 300kg, há chances de ela disputar um pódio olímpico. O que pode causar ainda mais repercussão.
? Ainda estamos longe de atingir o equilíbrio para não ferir nenhuma das partes. As atletas trans têm o direito de competir e as nascidas biologicamente mulheres não podem ser prejudicadas. Acho a decisão do COI heroica, uma hora tinha de chegar. Não dá para ficar esperando todos os estudos. Pode dar certo, mas pode dar errado também ? diz Fernando Solera , médico oficial do controle de doping da Fifa e da Conmebol.
Valores controversos
De acordo com a política atual do COI, há regras básicas para as mulheres trans que fizeram a redesignação de gênero e queiram competir: precisam declarar-se mulheres (ou seja, terem esse reconhecimento civil), e manter isso por um período de quatro anos; comprovação de que estavam com níveis de testosterona inferiores a 10nmol/L nos 12 meses anteriores à estreia e a manutenção abaixo desse índice ao longo da competição. Para o atleta homem trans, não há qualquer restrição. Esses valores da testosterona, no entanto, são controversos. Especialistas apontam que são muito mais altos do que os registrados nas mulheres cisgêneros, que pode variar entre 0,21 e 2,98 nmol/L.
? Deveriam reduzir em 2/3 o que é determinado agora. Em apenas 12 meses, não consegue essa reversão e não perde tanta massa muscular ou densidade óssea ao ponto do sexo feminino. São necessários mais estudos comparados entre mulheres trans e as do sexo feminino. E também devem ser feitos testes de acordo com as modalidades esportivas, pois há diferença das valências físicas ? diz Maria Fernanda Barca, doutora em endocrinologia pela USP e membro da Sociedade Europeia de Endocrinologia (SEE).
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E não é apenas o hormônio masculino que conta na compleição física. Solera acrescenta que há outros aspectos biológicos que dão vantagens físicas aos homens atletas com mesmo nível de preparo que as mulheres: coração maior (maior débito cardíaco), pulmões maiores e mais hemoglobina (maior oxigenação), mais massa muscular e a densidade óssea (estatura e envergadura maior).
? Em determinados esportes, se você nivela todo mundo tecnicamente e insere atletas mulheres trans vai ter alguma vantagem ? declara Solera.
Por isso, a redesignação de gênero antes da puberdade pode ser um ponto de equilíbrio. É durante a adolescência que as características secundárias masculinas e femininas surgem. Caso seja feito o bloqueio hormonal antes desse período, há a possibilidade de que a adolescente trans tenha o corpo mais próximo do sexo feminino e sem a memória acumulada de um corpo masculino que passou pela puberdade.
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É o caso da patinadora artística Maria Joaquina Reidkal, de 13 anos. Ela luta há dois anos pelo direito de competir na categoria feminina. Ano passado, ela conseguiu na Justiça a retificação do nome e do gênero. Há 10 dias, conquistou o brasileiro da sua faixa etária ao competir com uma autorização específica da federação de patinação artística, válida somente para o torneio em questão.
Apesar de fazer a terapia de bloqueio da puberdade e manter níveis de testosterona muito abaixo dos 10nmol/l, a cada competição ela precisa ir à Justiça para garantir a participação.
Discussão política
As regras do COI valem como balizador, mas fica a cargo das entidades nacionais e federações criarem suas regras. Não há uma regulamentação nacional. De acordo com Bruna Benevides, secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), há quase uma dezena de projetos de lei em assembleias legislativas pelo país que tentam proibir a inclusão dos atletas trans nas competições ? mesmo que não possam legislar sobre o assunto.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a Flórida proibiu, no início do mês, mulheres trans de competirem na categoria feminina. E há mais de 34 projetos semelhantes em outros estados.
? Há um levante antigênero no mundo. No Brasil, é preferencialmente antitrans. Mais do que um debate esportivo, é um debate político. Mas é um momento histórico para avançar nas discussões de questões de gênero e de corpos, e mostrar que um avanço desse lado não significa retirar direitos das mulheres cis ? diz Bruna.
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Além de Hubbard, a Olimpíada pode ter outras atletas com identidades de gênero diversas. Como a corredora americana Nikki Hiltz, que se identifica como não-binária, e a jogadora de futebol do Canadá Rebecca Quinn, que se declarou homem trans ano passado. Bem no espírito de diversidade e inclusão que se propõem os Jogos de Tóquio.
? A permissão do COI não encerra a discussão. É apenas um novo olhar sobre a inclusão das pessoas trans, mas não é a solução. Mas, sem sombra de dúvidas, é uma mudança de paradigma ? afirma Bruna. ? Imagino que possa dar um impulso enorme nas categorias amadoras e de base. Especialmente na juventude que sonha competir numa Olimpíada.
Fonte: O Globo