As terríveis estradas brasileiras são o refúgio para um andarilho que, com sua trajetória, ajuda a decifrar algumas mazelas do nosso futebol. Sempre que encerra um trabalho (voluntariamente ou por decisão dos cartolas), Enderson Moreira volta para casa de carro, sem se importar com a extensão da jornada. Agora mesmo, foram 2.360 km da Praia do Mucuripe, em Fortaleza, até Belo Horizonte, onde vive a família de um dos técnicos que mais troca de emprego ? e de endereço ? no Brasil.

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O ofício de instabilidade surreal multiplica as moradias, obriga a uma vida itinerante e solitária, distante de mulher e filhos, escrava da desumanização que grassa no futebol. A irracionalidade patológica de dirigentes e torcedores só tem olhos para o resultado ? e profissionais como Enderson viram nômades, mudando de cidade como as pessoas trocam de roupa.

A viagem mais recente, no fim de abril, atravessou a BR-116 no ritmo do rock, gênero predileto do motorista. Hits de Queen, U2, Rolling Stones, Beatles, Bee Gees, Capital Inicial, Paralamas, Skank, Jota Quest e Titãs, entre outros, emolduraram a reflexão sobre os 107 dias à frente do tricolor cearense, quase sempre no sufoco. Enderson chegou no início de 2021, com a missão de manter o Fortaleza na Série A ? e conseguiu, no desempate pelo saldo de gols com o Vasco. Acabou dispensado após ser eliminado nos pênaltis (nos pênaltis!) para o Bahia na Copa do Nordeste.

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? A gente vive num mundo irreal, porque ninguém consegue 100% de aproveitamento. Geralmente, não tem nem fase de preparação, os dirigentes não esperam ? narra. ? Culturalmente, no Brasil se associa o resultado do time ao treinador. A gente está preso na dinâmica do rodízio e não cresce, fica no mesmo lugar. Muito difícil ? constata.

Enderson tem lugar de fala na barafunda. Em quase 13 anos de carreira, trocou de emprego 16 vezes, até repetindo clubes ? duas passagens por Fluminense e Ceará e três pelo Goiás. Morou em Ipatinga (MG), Porto Alegre, Rio, Goiânia, Santos, Curitiba, Salvador e Fortaleza, além da “sua? Belo Horizonte (paulista de nascimento, foi para a capital mineira com três meses). Algumas jornadas foram brasileiramente rápidas: 71 dias no Fluminense em 2011; 35 no Athletico em 2015; 37 no Ceará e 46 no Goiás em 2020.

? Agora, no Fortaleza, ficamos oito jogos sem tomar gol e nunca levamos mais de um. Sempre priorizo a preparação do defesa, porque o ataque demanda mais tempo ?diz o técnico, que guarda a avaliação do próprio presidente do Fortaleza, Marcelo Paz, na conversa da demissão: “Seu trabalho é muito bom?. ? Conviver com pressão é para poucos.

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Ele criou receita própria para driblar a fuzilaria verbal. Não está nas redes sociais ? maior influência nas decisões dos cartolas atualmente ? por entendê-las como plataformas nas quais “detonar é mais atraente do que elogiar?. Tampouco circula pelas cidades onde trabalha. Prefere a reclusão do apartamento, para pensar no trabalho e se despir do estresse da beira do campo.

A rotina de monge da bola se explica pela desenfreada abordagem dos torcedores ? quando o time ganha, para festejar; quando perde, para cobrar. Por isso, sequer passeou pelo calçadão da Praia do Mucuripe, uma das mais belas, em frente ao apartamento que alugou. Até o prosaico ato de pedir comida em casa acaba contaminado pela irracionalidade que infesta o futebol.

? Quando o entregador reconhece a gente, quer conversar sobre o jogo, o time.

Longe da família

A família futebolística de Enderson tem três profissionais, que o seguem na odisseia: o preparador Edy Carlos e os auxiliares Luis Fernando Flores e Aylton Serafim. A mulher, Rosângela, e os filhos, Bruna, 24 anos, e Rafael, 23, ficam em BH.

Eles só acompanharam o treinador uma vez, na passagem pelo Internacional B, em 2010. Como o time foi muito bem na primeira temporada, Enderson teve o contrato renovado, conseguiu escola para as então crianças e fez a mudança nas férias. Com pouco mais de um mês de trabalho, foi demitido, criando, além da frustração, um transtorno familiar para recomeçar.

? Nos últimos 10 anos, tive pouquíssimo contato com meus filhos. A vida solitária é mais um preço que pagamos.

Em 2016, ele precisou pisar no freio da viagem incessante, devido a um drama familiar: Rosângela descobriu câncer de mama e passou por quimioterapia (bem-sucedida). Enderson pediu demissão do Goiás e aceitou convite do América-MG para voltar para casa.

Mas o planeta futebol não se comove com as limitações humanas. No fim de janeiro, o treinador passou oito dias internado (dois deles na UTI) com Covid-19, e dirigiu o Fortaleza no dia seguinte da alta, com tosse e cansaço. Pior mesmo foi em abril, quando ele se preparava para o jogo contra o Ypiranga (RS), pela Copa do Brasil, e foi avisado que a sogra acabara de morrer, também pelo coronavírus. Sem alternativa, postou-se à beira do campo, como sempre.

? Aqui tem um ser humano e as coisas às vezes dão errado ? conta. ? A questão emocional é muito importante, não dá para esquecer.

Na sua eterna estrada, Enderson aprendeu a tourear outros contratempos. Por causa da privacidade e do improviso, prefere não morar em hotel, mas precisa vencer a resistência dos corretores, que recuam do aluguel ao descobrir a profissão do inquilino.

? Eles sabem que técnicos raramente conseguem cumprir o contrato inteiro.

A questão econômica, aliás, determina algumas estratégias. Ele costuma exigir multas rescisórias salgadas ? não para receber o dinheiro, mas para inibir a demissão. Ele nega convite de dirigente que recusa a cláusula protetora:

? Para nós, a multa significa um pouco mais de tempo no emprego, porque o clube tenta não gastar. Mas é um dinheiro que detesto receber, porque significa que o trabalho não deu certo. Toparia ganhar 20% do que recebi das últimas vezes, se tivesse a garantia de ficar cinco anos no mesmo clube ? sonha, explicando que, ao contrário, busca o salário alto por ter quase certeza do encerramento prematuro.

No sábado 8 de maio, Enderson, 49 anos, sofreu um infarto, quando andava de bicicleta com a mulher, na fazenda da família em Sete Lagoas, região metropolitana de Belo Horizonte. Passou por um cateterismo e teve alta dias depois. Em casa, descansa à espera de convite para voltar à viagem ? e à estrada.

? Adoro dirigir. É quando tiro um tempo para mim, limpo a cabeça e começo a me preparar para o próximo desafio. Se não fosse treinador, seria motorista. E posso garantir: as estradas brasileiras estão péssimas ? avalia ele, sobre um país e seu futebol necessitado de caminhos melhores.

* Aydano André Motta é jornalista. A série #nuncaésóesporte será publicada quinzenalmente, às segundas-feiras.