Em 2003, quando o russo Roman Abramovich comprou o Chelsea, o mundo do futebol se assombrou com a entrada de um novo bilionário no esporte e seu real interesse ao gastar parte de sua fortuna em um clube com o qual não possuía nenhum vínculo e que estava longe de ser vencedor. Cinco anos depois, as perguntas se intensificaram quando o Abu Dhabi United Group desembarcou em Manchester para adquirir o então primo pobre da cidade, o City. As vontades ocultas haviam se tornado mais complexas.

Nesta quarta-feira, ficou definido que esses dois clubes ingleses, instrumentos de poder de seus donos estrangeiros, farão a decisão da Liga dos Campeões. O Chelsea do russo derrotou o Real Madrid por 2 a 0, em Londres, confirmou o melhor futebol jogado já na partida de ida, empatada em 1 a 1, e se juntou ao Manchester City dos árabes. Na terça, o time de Pep Guardiola eliminou o Paris Saint-Germain, de propriedade de cataris, na outra semifinal.

A final será disputada em Istambul, dia 29, se a pandemia da Covid-19 não atrapalhar. A Turquia vive novo surto da doença e atravessa período de lockdown. A Uefa, por enquanto, garante que a programação para a partida segue normal.

Seja no Ataturk ou onde a pandemia permitir, o duelo entre Chelsea e City vai reativar as discussões a respeito das verdadeiras intenções por parte de seus donos, para além da resposta que resume a estratégia como uma simples e cara ação de relações públicas.

É inegável, trata-se de um trabalho de positivação da imagem de seus proprietários. Cada um deles possui uma parcela considerável de ossos no armário. Abramovich, que iniciou no mundo dos negócios a partir da Perestroika ? processo de abertura econômica da antiga União Soviética, na segunda metade dos anos 1980 ?, encontrou no Chelsea uma maneira de quebrar a desconfiança que o Ocidente alimenta quanto aos novos ricos frutos da queda do comunismo russo.

Roman passou a frequentar Stamford Bridge e acenar com ar populista para os torcedores do Chelsea, gratos pelo início de uma era vitoriosa nunca antes vivida, enquanto surgiam acusações de suborno, fraudes e violações de leis antitruste.

Ainda assim, o clube de West London, alçado depois de nove anos de Abramovich à condição de campeão da Champions, era instrumento de um homem só.

Entrada dos árabes

A estratégia chamada de sportwashing ? quando o incentivo a atletas ou entidades esportivas tem por objetivo o estabelecimento de uma determinada reputação em relação ao autor ?, ganhou nova camada quando não um indivíduo, mas sim um país passou a acioná-la. Foi o que aconteceu quando o braço empresarial diretamente ligado ao governo dos Emirados Árabes comprou o Manchester City, que, 13 anos depois da guinada, finalmente consegue chegar à primeira final de Champions League.

Como era de se esperar, o estilo personalista, quase romântico de Roman Abramovich, com seus rompantes decisórios no Chelsea, não foi repetido por Mansour bin Zayed Al Nahyan, xeique dono dos Citzens.

O meio-irmão do emir Khalifa bin Zayed al Nahyan não reage aos seus impulsos pessoais e sim a um projeto de nação. Os Emirados Árabes encontrou no Manchester City, de acordo com especialistas em relações internacionais e Oriente Médio, além de um instrumento de sportwashing para amenizar o histórico desrespeito do país aos direitos humanos, um instrumento de política externa, um veículo estatal de propaganda do país no exterior, com efeitos no turismo, e uma maneira de exercer softpower ? quando você tenta dobrar o outro através do convencimento indireto e não pelo uso da força.

De certa forma, os clubes foram moldados à imagem de seus donos. O Chelsea foi punido em fevereiro pela Fifa por violar regras para a contratação de jogadores menores de idade. O Manchester City se livrou do afastamento de competições europeias por três temporadas depois de ser condenado por burlar a lei de fair play financeiro da Fifa.

Quando o foguete da Superliga de clubes explodiu horas depois de deixar a base de lançamento, gerando revolta dos torcedores, os finalistas da Champions faziam parte da tripulação. Eles participaram da maior tentativa de rompimento com a estrutura do futebol na era moderna, ainda que, vale ressaltar, esse aspecto transgressor não seja uma exclusividade de clubes cujos donos são “intrusos? no esporte. Real Madrid e Barcelona são entidades organizadas de forma semelhante aos clubes brasileiros, com sócios e presidentes eleitos, e também tentaram o voo. O Real, inclusive, era o comandante da nave.