As cenas de domingo em Old Trafford rodaram o mundo. Em protesto, torcedores do Manchester United se juntaram em frente ao hotel onde o time estava concentrado e logo depois invadiram o sempre seguro Teatro dos Sonhos, movimento que adiou o clássico entre os Red Devils e o Liverpool, pela Premier League. Nos últimos dias, o clube vem sendo alvo frequente de protestos, que têm crescido em proporção a cada oportunidade. Mas por que isso acontece?

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A fracassada tentativa da criação da Superliga Europeia, que tinha o United como um dos principais interessados e líderes continua sendo o combustível das manifestações ? o movimento de domingo foi o terceiro, depois de um protesto na porta do estádio em uma invasão ao centro de treinamento de Carrington ?, mas há um componente que inflama ainda mais a mistura no lado vermelho de Manchester: a espinhosa relação com a família Glazer, proprietária do clube.

Alvos de faixas exigindo suas saídas, Joel e Avram Glazer comandam e tomam as decisões no clube desde 2014, quando o pai, Malcolm, faleceu. O magnata do ramo imobiliário, dono do Tampa Bay Buccaneers, da NFL, comprou o Manchester United entre 2004 e 2005, após um longo processo de aquisição de fatias das ações do clube.

 

Acostumados a lidar com acionistas, especialmente a partir de 1991, quando o clube entrou de vez na Bolsa de Valores, os Red Devils se viram pela primeira vez sob um comando tão majoritário, que tirou até as pequenas fatias de ações que restavam nas mãos de torcedores. O fato, somado à origem norte-americana e a pouca ligação do novo proprietário ao clube ? o patriarca dos Glazer nunca foi a um jogo da equipe ? irritou os fãs.

Torcedores mais radicais chegaram a fundar um novo clube ainda em 2005, o United of Manchester (hoje, na sétima divisão inglesa), com a proposta de manter as tradições da equipe. As cores verde e dourado, referências à fundação do Manchester United, ainda como Newton Heath, viraram simbolo do movimento que pede, até hoje, a saída dos Glazers e a manutenção das raízes dos Diabos Vermelhos.

Joel Glazer and Avram Glazer encontram o técnico Solskjaer em uma sessão de treinamentos Foto: Carl Recine / Action Images via Reuters
Joel Glazer and Avram Glazer encontram o técnico Solskjaer em uma sessão de treinamentos Foto: Carl Recine / Action Images via Reuters

Dívidas e fenômeno comercial

A relação financeira da família com o clube é a parte mais controversa desta história. Como resultados da operação de aquisição do clube, que totalizou por volta de 790 milhões de libras na época, os Glazers fizeram com que o United contraísse uma grande dívida pela primeira vez desde os anos 30: o clube passou a dever cerca de 500 milhões de libras em empréstimos. Os valores e outras movimentações financeiras da família em Old Trafford ao longo dos últimos 16 anos geram mal estar.

Ao mesmo tempo, a família transformou o clube em uma máquina de fazer dinheiro. Apostando em uma estratégia de universalização da marca, o United ganhou fãs nos principais pontos do mundo ? em especial, na Ásia ?, chegando à casa de 600 milhões (segundo o clube), acumulou parcerias em valores recordes com empresas como Adidas, AIG e Chevrolet, e chegou a ser o clube com a maior receita do mundo em 2017 e 2018, acumulando 689 milhões de euros no primeiro. Hoje, é o quarto clube que mais fatura no mundo, e a dívida caiu para 455,5 milhões de libras, de acordo com dados do próprio United.

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No futebol, a relação é ainda mais complicada. Acusados de utilizar o United somente para fins financeiros e de evitar investimentos no futebol em seus primeiros anos no comando, os donos do clube acenaram em algumas oportunidades para um maior envolvimento com o dia a dia da agremiação, mas, na prática, essa relação fica nos ombros de Ed Woodward, vice-presidente executivo e homem de confiança dos Glazers. Conselheiro de Malcolm na aquisição do clube, o banqueiro comandou os setores comerciais e de mídia dos Diabos Vermelhos e galgou posições até chegar ao posto atual, substituindo o bem sucedido CEO David Gill, que deixou o clube em 2013.

Ed Woodward, vice-presidente executivo do Manchester United Foto: PAUL ELLIS / AFP
Ed Woodward, vice-presidente executivo do Manchester United Foto: PAUL ELLIS / AFP

 

Se já lidava com a fúria dos torcedores por ser o rosto da administração Glazer, o executivo ganhou ainda mais antipatia com as desastrosas decisões tomadas no futebol do clube desde a aposentadoria do lendário técnico Alex Ferguson. Os Diabos Vermelhos torrraram milhões em jogadores, passaram por três técnicos antes da chegada de Ole Gunnar Solskjaer e viram a derrocada da imagem do clube no cenário competitivo, concomitante ao crescimento do rival local Manchester City.

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Woodward não resistiu à pressão do naufragado projeto da Superliga e anunciou que deixará o Teatro dos Sonhos no fim de 2021, enquanto o United, vice-líder da Premier League e semifinalista da Europa League, parece ter enfim encontrado um projeto de futebol coeso nas mãos de Solskjaer. Mas os Glazers sabem que sua rejeição permanecerá em alta, independentemente  do próximo escolhido para comandar o futebol após a saída de seu homem de confiança. Um trecho da nota divulgada pelo clube sobre o protesto de domingo deixa bem claro o entendimento dessas diferenças:

“Nossos torcedores são apaixonados pelo Manchester United, e reconhecemos completamente o direito de liberdade de expressão e de protestar pacificamente”, diz o comunicado.