Com uma população estimada em 328 milhões de pessoas, os Estados Unidos ultrapassaram, na última sexta-feira, a marca de 200 milhões de doses aplicadas de vacinas contra a Covid-19. Em um dos países mais afetados pela pandemia, e também dos que agiram de forma mais rápida pelos imunizantes, a campanha de vacinação ainda enfrenta um obstáculo: a desconfiança. Esta tem gerado reflexos imediatos no basquete, um dos principais esportes do país.

Conhecido pelo seu posicionamento forte e engajamento em inúmeros questões políticas e raciais, o astro LeBron James chamou a atenção ao dizer que não tornaria pública sua decisão sobre se vacinar:

? É uma conversa que terei com a minha família. Vou manter isso como um assunto particular.

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Nos últimos meses, a NBA vem tentando convencer atletas e funcionários de suas equipes a aderirem aos imunizantes e promovê-los, um esforço que mobilizou lendas do esporte, como Kareem Abdul-Jabbar, Jerry West, Bill Russell e Julius Erving. Os ex-jogadores gravaram os momentos de suas vacinações e mensagens de incentivo para o “NBA Cares?, campanha envolvendo temas sociais e serviços à comunidade da liga. Mas o progresso ainda tem sido lento.

A liga anunciou, em março, que flexibilizaria as regras envolvendo uso de máscaras e encontros fora de quadra para equipes que já estivessem com 85% do seus quadros vacinados. Tanto incentivo é reflexo de uma dificuldade em ganhar a confiança dos atletas, cuja visão sobre a vacina varia radicalmente entre o “de jeito nenhum? e o “por que não tomar ainda mais cedo??, nas palavras de Michele Roberts, diretora-executiva da associação de jogadores (NBPA), em entrevista de fevereiro ao portal americano Yahoo Sports.

Kareem Abdul-Jabbar foi uma das lendas da liga a se vacinar Foto: Reprodução / NBA.com
Kareem Abdul-Jabbar foi uma das lendas da liga a se vacinar Foto: Reprodução / NBA.com

Na entrevista, Roberts menciona um fator que tem adicionado ainda mais camadas ao problema quando se fala na comunidade negra americana, que compõe a maior parte do quadro de atletas da NBA: as memórias do experimento de Tuskegee, entre os anos 30 e 70.

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O estudo foi o caso que ganhou mais repercussão entre uma série de procedimentos antiéticos e racistas praticados em pesquisas no país durante o início do século XX, décadas antes do surgimento dos movimentos pelos direitos civis. A pesquisa, organizada pelo serviço de saúde público americano na Universidade de Tuskegee, no Alabama, reuniu 399 homens com sífilis e prometeu a eles tratamento de saúde gratuito.

Sem consentimento dos participantes, foi administrado placebo, um remédio sem qualquer efeito, visando à observação da evolução da doença quando não tratada em afro-americanos. A pesquisa durou de 1932 a 1972, quando foi encerrada após repercussão na imprensa do país, e terminou com 128 mortes, 28 delas diretamente relacionadas à doença e 100 por complicações ligadas a mesma.

? Mesmo depois de 1947, quando a penicilina já tinha sido descoberta como um remédio bom e efetivo para a sífilis, continuaram não dando remédio à população ? lembra Lise Sedrez, professora do Instituto de História da UFRJ.

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Na época, o governo americano foi condenado a pagar uma indenização de 10 milhões de dólares, bem como custear os tratamentos dos filhos dos participantes que nasceram infectados com a doença. Em 1997, o então presidente do país, Bill Clinton, pediu desculpas públicas pelo estudo.

?Em muitas ocasiões, nós fomos as cobaias da ciência ? diz Michele Roberts.

Herman Shaw, sobrevivente do estudo de Tuskegee, abraça o presidente Clinton após desculpas públicas Foto: Stephen Jaffe / AFP
Herman Shaw, sobrevivente do estudo de Tuskegee, abraça o presidente Clinton após desculpas públicas Foto: Stephen Jaffe / AFP

 

‘Nós não esquecemos’

Em dezembro, o técnico do Philadelphia Sixers, Doc Rivers, se disse a favor da vacina, mas lembrou do estudo ao dizer entender a desconfiança:

? Vamos ser honestos: eu entendo as suspeitas também, especialmente por ser um homem negro e por conta de Tuskegee. Nós não esquecemos coisas assim ? disse, em declarações reproduzidas pelo jornal “USA Today?.

Entre os jogadores, nomes como Dwight Howard (Sixers), Michael Porter Jr. (Denver Nuggets), Kent Bazemore e Andrew Wiggins (Golden State Warriors) já se posicionaram publicamente contra o imunizante. Wiggins chegou a mencionar que só tomaria se fosse obrigado pela liga, que, por sua vez, deixa os atletas livres para optarem.

Técnico dos Sixers, Doc Rivers apoia a vacina, mas entende a desconfiança Foto: Jerome Miron / USA TODAY Sports
Técnico dos Sixers, Doc Rivers apoia a vacina, mas entende a desconfiança Foto: Jerome Miron / USA TODAY Sports

 

Lise Sedrez explica que, apesar de Tuskegee ser o caso mais famoso, outros estudos com práticas antiéticas ajudaram a construir essa desconfiança entre a comunidade negra e outras populações vulneráveis:

? Tuskegee não era um ponto fora da curva. Historicamente, havia o uso de corpos negros com muita frequência pela medicina no passado. Há todo um outro histórico, que tem que ser levado em consideração, de dificuldades dessa população de ter acesso à medicina, dificuldades que são correntes, não são de ontem.

NBA realiza palestras

Em dezembro, uma pesquisa da Kaiser Family Foundation apontava que, entre a população negra norte-americana, 52% aguardaria antes de procurar a vacinação, enquanto cerca de 20% se vacinaria imediatamente. Os números cresceram após atualização em março: agora, 55% afirma que procuraria a imunização imediatamente (ou já está imunizado) e apenas 24% dos entrevistados seguem afirmando que aguardarão para observar.

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De olho nesses números, a NBA vem realizando uma série de palestras e conversas particulares para tentar deixar seus atletas confortáveis sobre o assunto, iniciativa liderada pelo vice-presidente médico Leroy Sims, que esteve à frente da “bolha? da temporada passada. Franquias como Pelicans, Hawks e Timberwolves já anunciaram que começaram a vacinar seus elencos.

Especialista em bioética, Tatiana Tavares, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ressalta a importância da transparência.

? Em políticas de de saúde pública, de tratamento médico, você só consegue a aderência quando o paciente tiver compreendido. Ele não vai ser convencido se tiver medo.