Escravo, cachorro negro, negro sujo, chimpanzé, macaco. A coleção de xingamentos racistas foi acumulada pelo brasileiro e australiano Héritier Lumumba, de 34 anos, ao longo dos 11 anos que jogou futebol australiano ? esporte mais popular do país, uma mistura de rugby e futebol americano ? e foi um dos astros do campeonato local. As injúrias vinham dos próprios colegas de clube. Na maior parte do tempo, o jogador, nascido na Zona Norte do Rio de Janeiro, atuou pelo Colingwood, um dos principais times do país.

Na Europa: Diakhaby, do Valencia, abandona jogo após ataque racista; em apoio, resto do time sai de campo

As denúncias de Lumumba explodiram o clube recentemente. Uma investigação independente chegou à conclusão que havia racismo sistêmico na instituição. Três dias após a publicação, Eddie Mc Guire, homem influente da mídia australiana e presidente do clube há mais de duas décadas, renunciou ao cargo.

O brasileiro Héritier Lumumba viv agora em Los Angeles, nos Estados Unidos Foto: Acervo Pessoal
O brasileiro Héritier Lumumba viv agora em Los Angeles, nos Estados Unidos Foto: Acervo Pessoal

Mas não foi fácil como o parágrafo acima deixa a entender. As denúncias começaram em 2013, quando Lumumba era destaque do time e respondeu, no Twitter, uma piada do presidente do clube sobre aborígenes e o filme King Kong. Ele havia comparado um jogador de origens indígenas ao gorila, dizendo que ele seria uma boa opção para promover a estreia do musical.

? Ele fez essa piada e ninguém no clube ou da liga falou nada. Foi como se nada tivesse acontecido. Não foi uma coisa dita por qualquer um na rua, saiu do cara que é considerado um dos mais poderosos no país. E, para mim, quando se combina uma posição como a dele, de poder, com racismo, é algo muito perigoso. E as pessoas ao meu redor trataram como se fosse nada ? conta Lumumba, por telefone, ao GLOBO.

Vasco: No centenário de Barbosa, Lucão puxa homenagens e alerta para estigma do goleiro negro

A reação à ação de Lumumba nas redes o surpreendeu.

?Foi o começo de outro grau de racismo que tive que enfrentar. Pessoas em posição de liderança falaram que eu estava errado e que o traí. Tentaram me empurrar essa história de que foi “mimimi? da minha parte. Pelo que eu reparo, racistas têm as mesmas perspectivas no mundo inteiro ? avalia o ex-atleta, que tem advogados atualmente em conversa com a equipe jurídica do Collingwood, para avaliar uma indenização. Graças ao episódio, ignorado depois de pouco tempo na época, ele deixou o clube no ano seguinte, e seguiu jogando até dezembro de 2016.

Já aposentado, ele voltou ao tema no ano passado, quando a onda de protestos do movimento “Vidas Negras Importam? chegou à Austrália. Ao questionar, também via redes sociais, as postagens da liga australiana e de clubes, como o próprio Colingwood, pedindo respeito e apoiando os protestos, o brasileiro relembrou sua história. E o novo momento da sociedade desencadeou uma onda de acontecimentos em que sua dor foi reconhecida.

Barbosa 100 anos:Como ídolo do Vasco vem sendo absolvido da ‘culpa’ pelo Maracanazo

Com a família no Brasil Foto: Acervo Pessoal
Com a família no Brasil Foto: Acervo Pessoal

No dia 31 de janeiro, o jornal “Herald Sun” vazou um relatório nomeado “Do Better? (Faça Melhor), documento desenvolvido a pedido do próprio Collingwood, para investigar práticas discriminatórias dentro do clube e, em geral, na Australian Football League (AFL). Produzido por duas professoras acadêmicas a partir de 35 entrevistas feitas ao longo de seis meses, o relatório foi categórico ao diagnosticar o racismo institucional.

“Ficou claro que funcionários, jogadores, ex-jogadores e torcedores têm experienciado incidentes de racismo e a resposta de Collingwood para esses incidentes foi, na melhor das hipóteses, ineficaz, ou, na pior, agravou o impacto dos incidentes racistas (…) Os contínuos fracassos em a esse respeito falam de um racismo sistêmico dentro do Collingwood Football Club que deve ser tratado se as coisas quiserem mudar?, dizia o relatório.

Angola e Brasil

Fiho de uma diáspora, Lumumba cruzou um longo caminho, tal qual aqueles que o antecederam: fugido da guerra civil que ocorria na Angola, seu pai veio para o Brasil, onde passava parte do tempo na comunidade da Serrinha, em Madureira. Em uma apresentação de jongo, conheceu a mãe de Lumumba, manauara que morava no Rio. Foi entre a comunidade e o bairro de Vila Isabel que o atleta passou os primeiros dois anos e meio de vida, até a ONU oficializar a situação do pai como refugiado e oferecer a Austrália como asilo. O futuro jogador, a mãe e o irmão embarcaram alguns meses depois.

? Faço parte da primeira geração das pessoas consideradas afro-australianas, porque, antes dos meus contemporâneos, não tinha uma grande quantidade de afrodescendentes se socializando. Quando cheguei, o país estava abrindo as fronteiras, por conta das leis da ONU ? relembra ele.

‘Mando notícias amanhã’:as últimas mensagens de Pepê, trinta anos após sua morte

Ao assinar com o Collingwood, no final de 2004, uma semana depois de fazer 18 anos, descobriu, logo de cara, mais uma forma em que o racismo pode se expressar.

? Na primeira entrevista que dei, fizeram uma matéria dizendo que eu podia estar pedindo esmola nas ruas e favelas. Isso com menos de um mês de contrato assinado. Eram várias forças me alcançando com a discriminação racial. A mídia, os torcedores, os colegas de time, os adversários ? conta ele, que fez questão de ser entrevistado para um jornal brasileiro por um negro, e se mostrou curioso sobre os episódios de racismo que o repórter já havia passado na carreira. Só assim, segundo Lumumba, seria possível contar sua história da maneira certa.

30 anos depois:Leia a íntegra de três das últimas mensagens de Pepê

Nos anos em que morou na Austrália ? hoje ele vive em Los Angeles, nos EUA, com a família ?, sempre retornou ao Brasil de férias, mas, depois de encerrar a carreira, tirou da gaveta o passaporte brasileiro e comprou uma passagem só de ida para o Rio, dividindo por alguns meses o tempo também com Salvador, na Bahia.

? Sempre me identifiquei mais com minhas origens africanas do que minha nacionalidade australiana, conquistada pela jornada do meu pai, fugido de uma guerra civil, gerada pelo imperialismo, que, no fundo, é racismo. A minha história é simplesmente uma continuação da dos africanos atravessando o Atlântico e chegando ao Brasil. Para me sentir humano, eu tinha que “aquilombar?, ir atrás da minha cultura. E eu sempre voltei à Serrinha. Em qualquer lugar do mundo temos que achar espaços que respeitem nossos direitos e humanidade.