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'Mando notícias amanhã': as últimas mensagens de Pepê, trinta anos após sua morte




O maior e mais versátil atleta brasileiro em esportes radicais morreu de forma trágica no Japão 30 anos atrás. Era tarde de 5 de abril 1991 em Wakayama, quando Pedro Paulo Guise Carneiro Lopes, o Pepê, aos 33 anos de idade, saltou para seu último voo de asa delta. Num campeonato marcado por péssimas condições meteorológicas e precária estrutura de segurança para os pilotos, ele lutava por mais um título no país onde conquistara seu primeiro mundial de voo livre.

30 anos depois:Leia a íntegra de três das últimas mensagens de Pepê

Três décadas depois do acidente, O GLOBO traz à tona as últimas mensagens escritas por Pepê e enviadas via fax a um amigo e assessor no Brasil ? um conteúdo que até mesmo a família do competidor carioca desconhecia e que ajuda a desvendar as tensões, a ansiedade e a expectativa pela vitória que marcaram seus últimos dias de vida. Em três textosescritos de próprio punho, é Pepê quem nos guia nessa jornada por suas esperanças e inquietações, registradas em caligrafia tipo bastão nos papéis com a marca The World Open HangGliding X.C. ? de um torneio para o qual só haviam sido convidados atletas da elite do voo livre no planeta.

Foi num restaurante de Ipanema, bairro onde Pepê cresceu e começou a pegar onda, que João Pedro Gayoso viu pela primeira vez, a convite do GLOBO, as reproduções das mensagens enviadas por seu pai a Ivandel Godinho, fundador da InPress (hoje InPress Porter Novelli). Na ocasião, a agência de comunicação fazia a divulgação da carreira do ídolo patrocinado pela loja de departamentos Mesbla, com destaque para a marca Alternativa, voltada ao consumidor jovem. Quando ocorreu o acidente, João Pedro tinha 1 ano ? a mesma idade de seu filho agora. Foi toda uma vida conhecendo o pai como um herói dos esportes por meio de relatos da família, da memória dos amigos, das reportagens sobre suas façanhas e da admiração dos fãs. Nada que fosse capaz de ocupar o espaço da ausência dele:

? É muito louca essa oportunidadede você voltar no tempo. Vem uma sensação de angústia. De você querer poder se aproximar da pessoa para compreender o que ela viveu ali naquele momento e por que tomou aquela decisão.

O filho João Pedro e o capacete de Pepê no título mundial de voo livre Foto: Alexandre Cassiano
O filho João Pedro e o capacete de Pepê no título mundial de voo livre Foto: Alexandre Cassiano

João Pedro se refere à decisão de assumir o risco de disputar a quinta prova do campeonato: uma travessia de cem quilômetros, com raras áreas de pouso em caso de emergência, e condições muito desfavoráveis para o voo livre. Pepê havia alcançado a segunda posição geral, depois de um começo apenas regular, em sétimo. O mau tempo indicava que o campeonato teria que ser interrompido ? apesar da resistência dos organizadores ? antes do total previsto de seis disputas entre os pilotos. Aquela poderia ser, portanto, a derradeira chance de virar o jogo, assumir a ponta e conquistar o título.

? Não tinha como podar as asas do meu pai. Essa era a natureza dele: como um pássaro, que não pode ficar preso. Não era uma mera inconsequência, mas sim o que dava a ele felicidade e motivação ? quem fala assim é Bianca Gayoso, a filha mais velha. Bianca tem hoje 33 anos, mesma idade de Pepê quando morreu, e é mãe de uma menina. Ela diz que já precisou fazer “muita terapia? para entender o pai.

Os três pilotos brasileiros que participaram do torneio no Japão: Pepê, Paulo Coelho (no meio) e Phil Haegler. Pepê e Paulo morreram em acidentes com asa delta Foto: Acervo pessoal
Os três pilotos brasileiros que participaram do torneio no Japão: Pepê, Paulo Coelho (no meio) e Phil Haegler. Pepê e Paulo morreram em acidentes com asa delta Foto: Acervo pessoal

Num mundo pré-Internet, Pepê driblava as dificuldades de comunicação incorporando o papel de assessor de imprensa. A pedido de Ivandel Godinho, ele fazia o relato diário da competição, detalhando o desempenho dos pilotos, incluindo o seu próprio. Referia-se a si mesmo na terceira pessoa ? não por estrelismo, mas porque a técnica de reportagem assim o exigia. Ao fim do dia de provas, enviava o material para a agência, que se encarregava de repassar às redações. O desportista multifuncional ? que foi campeão no hipismo, no surfe e no voo livre ? e o empresário inovador ? que popularizou a alimentação natural com os sanduíches da barraca que levava o seu nome ? tinha também esse talento: era um comunicador e tanto.

? Esta aqui (a última mensagem)mostra o quão feliz ele estava pelo resultado que tinha obtido. Consigo imaginar totalmente como ele estava se sentindo. E com a certeza de que iria ganhar.O meu pai também tinha muito forte essa questão de imagem. Tudo o que ele fazia dependia da imagem dele. Essa vitória para ele representaria muito ? comenta João Pedro, com a reprodução do fax em mãos.

? Dá vontade de voltar no tempo e dizer: ?Pai, não vai, não…??? ? pergunta O GLOBO ao filho de Pepê.

? Sempre. Ainda tinha tanta coisa…

Pepê com os filhos João Pedro e Bianca Foto: Arquivo pessoal
Pepê com os filhos João Pedro e Bianca Foto: Arquivo pessoal

E tinha mesmo. Pepê havia dito ao pai, Danton, que o campeonato no Japão representaria o anúncio de sua aposentadoriado voo livre. Daí também vinha, provavelmente, toda sua gana em vencer, encerrando a carreira com um título no mesmo país em que havia se consagrado com sua asa delta dez anos antes. Casado, com dois filhos, homem de negócios bem-sucedido, ícone em várias modalidades esportivas, Pepê era também o que hoje chamaríamos de “influenciador digital? ? muito antes de existirem redes sociais, ele sabia como se conectar com seu público. Transformava seu estilo de vida em produtos e diferentes conteúdos, influenciando a cultura e o comportamento. Naquele mesmo ano do acidente, havia lançado seu primeiro álbum como compositor e músico: “Feito um Cometa?. Na faixa-título, ele conta com a participação de Lobão, um dos grandes nomes do pop rock naquele período. A inusitada dupla canta em um trecho:

Eu sou assim e gosto de liberdade

Nos atos e fatos dessa sociedade

Eu sou o cara desse planeta

E sigo forte, feito um cometa

As últimas mensagens de Pepê

Textos foram enviados via fax a um amigo e assessor no Brasil

As últimas mensagens de Pepê Foto: Editoria de Arte
As últimas mensagens de Pepê Foto: Editoria de Arte

 

A seguir, faça uma imersão em profundidade na alma desse cara, um dos maiores campeões brasileiros em todos os tempos. O cometa Pepê por ele mesmo, em sua viagem final. Leia a íntegra dos textos aqui.

O Pelé dos esportes radicais

Perfil de um campeão em terra, mar e ar

Pepê,em 1988: entusiasta da asa delta,foi campeão em vários esportes Foto: Cezar Loureiro/1988
Pepê,em 1988: entusiasta da asa delta,foi campeão em vários esportes Foto: Cezar Loureiro/1988

Para aqueles com menos de 40 anos, que não haviam nascido ou eram crianças quando Pepê estava em ação, aqui vai uma dica para tentar entender seu peso e sua importância: esqueça o noticiário esportivo do Brasil atual. Simplesmente não temos um ídolo desse tipo hoje em dia. Melhor ir buscar apoio na ficção. Nos super-heróis.

Comece pela DC Comics, com o Aquaman, da Liga da Justiça. Esse é o Pepê surfista, senhor das águas, rasgando as ondas. Avance para a Marvel. Escolha o Falcão, dos Vingadores, com sua capacidade de voar. É o Pepê da asa delta. Volte para a DC e ingresse no universo da Mulher Maravilha 1984. Sabe aquelas amazonas incríveis competindo e realizando façanhas sobre cavalos? Então, esse é o superpoder do Pepê do hipismo. Comentaristas costumam falar em atletas “predestinados?. A vida, a fortuna ou uma força divina os concedeu talento (um dom?) e os selecionou para serem campeões.

30 anos depois:Leia a íntegra de três das últimas mensagens de Pepê

Nada mais injusto. Atleta campeão de verdade é o pós-destinado, aquele que ? com seu talento natural, é claro ? construiu seu próprio destino com determinação, treino, esforço e escolhas certas. Pepê foi assim. Decidiu ser Pepê. E batalhou para isso. Passou por diversas modalidades e teve conquistas no hipismo (campeão estadual), no surfe (primeiro brasileiro a ganhar etapa do circuito mundial e primeiro a ser finalista no Pipe Masters, em 1976) e no voo livre (único do país a ganhar um mundial, em 1981).

Campeão em terra, mar e ar. Não há igual, portanto. O Pelé dos esportes radicais tem algumas incríveis coincidências com o Rei do Futebol, por sinal. A começar pelas quatro letras do apelido.

Pelé inseriu em sua assinatura o movimento da bola. Há quem veja até mesmo o desenho de um gol de bicicleta no giro da letra P. Pepê, por sua vez, demarcou para a eternidade a modalidade que tanto amava no circunflexo do “e?. O tal “chapeuzinho? que as professoras ensinam deveria ser explicado de outro jeito. Que chapéu, que nada… É uma asa delta. A asa delta do Pelé dos esportes radicais.

*Alexandre Freeland é jornalista e diretor executivo da InPress Porter Novelli

Fonte: O Globo


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