Uma fala de Pelé dada ao documentário homônimo ? em exibição na Netflix ? resume bem seu nível de conhecimento, à época da Ditadura, em relação às torturas praticadas pelos militares: “Se eu dissesse que não sabia, que nunca fiquei inteirado disso, eu estaria mentindo. Muitas coisas a gente ficava sabendo. Mas tem muitas coisas também que a gente não sabia se era verdade ou mentira. Porque o Santos estava excursionando fora do país, e chegavam notícias. Mas como você iria saber se era verdade ou mentira? Aqui, no Brasil, a gente sempre era orientado a tomar cuidado, a não sair do hotel. Eu me sentia preocupado?.
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Pelé sempre conviveu com críticas em relação a sua postura durante o período entre 1964 e 1984. Para alguns, foi um alienado político que não usou sua relevância para chamar a atenção do mundo para a ausência de democracia no Brasil. Outros foram além e o acusaram de ter permitido que o regime pegasse carona em sua popularidade. O filme resgata este debate ao permitir que o próprio Rei do futebol responda a alguns destes questionamentos.
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A tentativa de discorrer sobre diversos temas em apenas 108 minutos impede uma discussão mais aprofundada sobre a relação do ex-camisa 10 do Santos e da seleção com os militares. Ainda assim, é possível perceber aquilo que os pesquisadores de sua biografia defendem há alguns anos: Pelé nunca chegou perto de ser um crítico do governo, mas tampouco foi seu aliado.
? Ele gostava desse personagem. De ser o Pelé, e não o Edson. Em partes, se deixou ser usado pela Ditadura. Foi receber homenagem do (presidente Emílio Garrastazu) Médici, inaugurou praça no México a convite do governo, entre tantos outros pedidos. Mas chegou a dizer “não?. Sobretudo quando decidiu encerrar a carreira dele na seleção ? afirma Marcel Tonini, historiador pela USP e editor do site Ludopédio.
O Governo Médici (de 1969 a 1974) é marcado tanto pelo endurecimento da repressão quanto pelo crescimento econômico. O futebol serviu como instrumento para o fortalecimento da ideia de um país unido. Não por coincidência, neste período teve início o Campeonato Brasileiro. Já a seleção e seu sucesso serviram de propaganda para a imagem de nação em desenvolvimento. Neste contexto, natural que Pelé fosse o maior alvo do interesse dos militares.
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Os historiadores destacam que é importante ter em mente quem foi o ex-jogador para além da estrela do futebol: um homem de origem simples e negro, nascido num país que tem por tradição negar oportunidades aos mais pobres. Entre elas, a de adquirir conhecimento. Além disso, é preciso considerar que se trata do Brasil dos anos 1960 e 1970, ainda mais classista e racista. Logo, cobrar de Pelé a mesma postura que a de um estudante universitário da época ou a de um ativista político é ignorar todo este contexto.
? O Pelé foi, para a literatura especializada, o primeiro jogador produto. O primeiro que vivia da imagem, não só do futebol. Então é óbvio que a neutralidade política, ou até mesmo a aproximação do regime, eram estratégicas para a sua imagem ? analisa Fernando Luiz Vale Castro, professor do Instituto de História da UFRJ:
? Ele era uma das três, quatro figuras mais faladas no mundo. Isso trouxe ganhos, sobretudo financeiros. Mas também a necessidade de certas omissões por conta dessa posição que ocupava. E, ao mesmo tempo em que ele vivia de jogar futebol, não estava interessado em política. Não era uma questão para ele. De certa forma, sabia que estava se beneficiando disso. Não acredito que fosse um total grau de inocência.
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O episódio envolvendo a demissão de João Saldanha às vésperas do Mundial de 1970 foi um exemplo na prática de como a interferência do regime na seleção poderia ser cômoda para o Rei. O então técnico revelara à imprensa que a estrela da equipe era míope ? o que o próprio jogador desconhecia, mas que se revelou verdade décadas mais tarde. No documentário, Pelé deixa clara a tensão entre ele e o então treinador. A troca por Zagallo (por uma série de discordâncias do técnico com a Confederação Brasileira de Desportos e com o governo), solucionou este conflito.
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Mas nem sempre os interesses do camisa 10 e do governo andaram lado a lado. O recorte temporal feito pelo filme vai até a conquista do tricampeonato no México. Depois dali, contudo, um Pelé mais maduro passa a comprar brigas. Em especial, a pelo direito de não jogar mais pela seleção, o que não foi bem recebido à medida em que a Copa de 1974 se aproximava.
? Olhando a última etapa da sua carreira profissional, é inegável que, ali, os interesses dele não coincidem mais com os da Ditadura. E acho que passou batido como o Pelé teve muita dignidade e força de enfrentar a pressão de Brasília ? conta José Paulo Florenzano, professor de Antropologia da PUC-SP:
? A pressão vem do Planalto e da Rua da Alfândega (endereço da CBD), porque, na época, o João Havelange já visava à presidência da Fifa e queria seguir explorando a imagem do Pelé. O Palácio e a CBD jogam a opinião pública contra ele. E boa parte do mal-estar da sociedade com o Pelé não resolvido até hoje tem a influência destes dois. A ideia de que ele é mercenário, de que só pensa em si… Não se pode esquecer que, naquele momento, servir à seleção era tratado com a equivalência de servir ao Exército. Como patriotismo.
Fonte: O Globo