Mario Filho era um contador de histórias. Só um escritor como ele, de estilo atraente e persuasivo, poderia ter dado a uma briga de garotos pela escalação de um time as cores de uma paixão a dividir ? ou unir ? duas multidões de torcedores. Clássico dos clássicos, o Fla-Flu, que terá mais um capítulo hoje, às 18h, no Maracanã, pela terceira rodada do Carioca, é o único com a força meio mágica de ser sempre um grande espetáculo, mesmo quando um ou os dois lados não são representados por seus melhores artistas. O apelo do Fla-Flu vai mais além. Mesmo sendo o futebol o mais imprevisível dos esportes coletivos, em nenhum outro clássico são tão frequentes os resultados que contrariam as previsões do torcedor, do analista neutro, da própria lógica. Mario Filho não criou tal mágica, mas percebeu-a primeiro. E nos ajudou a entendê-la.

A briga de garotos deu-se quando os campões de 1911 pelo Fluminense discordaram sobre quem formaria o pomposamente chamado Ground Committee, grupo encarregado de escalar o time para a temporada de 1912. É verdade que os garotos não eram tão garotos assim, mas jovens da elite que o Fluminense se orgulhava de ser. Liderados por um deles ? Alberto Borgerth, de 19 anos ?, nove titulares romperam com o Flu e foram fundar o futebol do Fla, até então, um clube dedicado exclusivamente ao remo.

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Mario Filho tinha três anos de idade quando Borgerth levou sua turma para o Flamengo. O futuro jornalista nascera no Recife e em 1916 se mudaria com a família para o Rio. Começou a se informar sobre o caso dez anos depois, já trabalhando em “A Manhã?, jornal do pai. Soube de detalhes da briga pelas atas das várias reuniões sobre o Ground Committee, preservadas pelo Fluminense, e também por depoimentos de personagens que acabara de transformar em amigos. Um deles, o próprio Borgerth.

Mas não foram os detalhes em ata o que mais impressionou o jovem jornalista. Fora das atas, tais detalhes só eram assunto de conversa entre o pessoal do meio. Mesmo em 1911, poucos se ligaram no episódio. O país ainda sentia os efeitos dos primeiros e conturbados meses do governo Hermes da Fonseca, de modo que o futebol, menos popular que o remo e muito restrito às classes média e alta, não era assunto de tanto interesse. Raramente tinha espaço nos jornais, ao contrário das regatas. A seleção brasileira só começaria a existir dali a três anos e o que se tinha de mais parecido com um “estádio? eram os pavilhões de madeira que abrigavam sócias e sócios nos dias de jogo, Nesse ambiente, quem se importava com um clube de remo aderindo ao futebol?

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O que mais impressionou Mario Filho foi o fato de o primeiro jogo entre Flamengo e Fluminense, domingo, 12 de julho de 1922, nas Laranjeiras, ter terminado com a vitória por 3 a 2 dos ex-reservas do Fluminense sobre os ex-titulares campeões de 1911, agora no Flamengo. O clássico começava com uma incrível surpresa, a primeira de muitas.

Flamengo e Fluminense empataram em clássico pelo Campeonato Carioca de 1966 Foto: Arquivo O Globo
Flamengo e Fluminense empataram em clássico pelo Campeonato Carioca de 1966 Foto: Arquivo O Globo

 

Para o espírito jornalístico e ao mesmo tempo literário de Mario Filho, era assunto que não poderia se limitar às atas e à memória de alguns personagens. Era uma história da derrota da arrogância para a humildade, do falso certo para o aparente duvidoso. Uma história de vingança, drama, frustração, sucesso, só explicável porque aquele clássico ? que ele logo rebatizaria como Fla-Flu ? nascera com uma mística que só cresceria: o Fluminense tornando-se por muito tempo o mais exemplar dos clubes de futebol brasileiro, o Flamengo destinado a ser, para sempre, o mais querido.

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Muitos ainda elegeriam Mario Filho como o mais importante jornalista esportivo do Brasil. Senão tanto, pelo menos aquele que modernizou o modo de os jornais tratarem o futebol. Em seus textos no GLOBO e no “Jornal dos Sports?, Mario Filho ensinou às novas gerações de editores que as matérias do esporte não deviam se concentrar apenas nos resultados, na vida interna dos clubes, na fala dos dirigentes, nas disputas entre federações, na burocracia dos gabinetes. Para ele, a mais rica matéria-prima do futebol, ou de qualquer esporte, era o homem, o atleta, o craque, o ídolo, ou mesmo aqueles a quem a sorte não tratara bem. Adotou essa posição principalmente depois que o futebol se profissionalizou, em 1933.

Muitos textos de Mario Filho seriam aproveitados em livros. Todos, os sobre futebol, muito bons. Ou mesmo obrigatórios, como “O negro no futebol brasileiro?, em que ele aborda a questão do racismo, nunca antes tratada por nossos jornais. Em todos esses livros, o contador de história está presente.

Bebeto e Romerito disputando lance em Fla-Flu do Carioca de 1984 Foto: Hipólito Pereira
Bebeto e Romerito disputando lance em Fla-Flu do Carioca de 1984 Foto: Hipólito Pereira

 

Seus personagens são heróis como Leônidas da Silva e Domingos da Guia, craques sem sorte como Fausto dos Santos, ídolos caídos como Heleno de Freitas, mas sempre o homem que o torcedor só conhece por ele.

De volta ao Fla-Flu, o tema do primeiro jogo foi várias vezes lembrado por Mario Filho em textos que o irmão quatro anos mais moço, Nélson Rodrigues, elevava à condição de obras-primas. A forma e o tom dramático com que contava a experiência que fazia dos nove “desertores? os “inventores do Flamengo? convertia um simples jogo de 1922 numa narrativa quase épica, como Nélson, dramaturgo de verdade, gostava de repetir.

Mario Filho nasceu numa família destinada a se tornar, por algum motivo, tricolor de coração. Irmãos e outros parentes escolheram o Fluminense para torcer contra todos, principalmente o Flamengo. Mario Filho, flamenguista, acompanhou isso tão silenciosamente quanto possível. Silêncio, no caso, por jamais confessar uma preferência que seus textos denunciavam. Quem duvidar, que leia “Histórias do Flamengo?, coletânea do que vinha escrevendo desde moço. Quando morreu, em 1966, ainda se dizia, simplesmente, torcedor do Fla-Flu. Um modo carinhoso de ser o que era, de agradar os irmãos e de manter viva a velha magia.