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‘Acreditei que eu era minha irmã morta ressuscitada’



'Eu tinha morrido, passado supostamente nove meses no céu e depois voltado para cá', conta Gail
‘Eu tinha morrido, passado supostamente nove meses no céu e depois voltado para cá’, conta Gail

Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Gail Gallant cresceu acreditando que era fruto de um milagre: ela era a ressurreição da irmã morta em um acidente de carro, havia dito sua mãe.

Não era à toa que as duas tinham o mesmo nome.

“Eu tinha morrido, passado supostamente nove meses no céu e depois voltado para cá”, diz ela.

Em entrevista ao programa Outlook, da BBC, Gail conta o peso que isso teve em sua vida — e como foi capaz de se libertar do fantasma da irmã.

Em julho de 1955, a família Gallant foi vítima de um trágico acidente de carro no Canadá.

A caminho da casa de parentes, o carro em que estavam foi atingido por um caminhão.

Todos os membros da família ficaram feridos — e a filha mais nova, Gail, com apenas cinco meses, viria a falecer algumas semanas depois no hospital.

Maria Gallant ficou completamente devastada com a perda da filha, e o médico sugeriu que ter outro bebê poderia aliviar sua dor.

Pouco tempo depois, ela estava grávida de novo.

Católica fervorosa, se convenceu imediatamente que a gestação seria uma forma de Deus atender suas preces e trazer sua filha de volta.

Quando deu à luz uma menina, praticamente idêntica ao bebê que havia perdido, teve certeza que se tratava de um milagre.

“Ela não queria ter outro filho, ela só queria aquele bebê de volta. (Ela acreditava) que Gail estava literalmente na sua barriga, crescendo novamente”, diz a hoje escritora Gail Gallant, que veio ao mundo em um parto milagrosamente indolor.

“Segundo a minha mãe, eu tinha exatamente o mesmo peso, cabelos escuros, o mesmo rosto…”

Maria decidiu então chamá-la de Gail, mesmo nome da filha que havia perdido.

E aos quatro anos, Gail se sentiu ciente que havia “renascido”.

“Acho que foi a primeira vez que entendi que, segundo a minha mãe, meu nascimento tinha sido um milagre, que eu tinha morrido, passado supostamente nove meses no céu e depois voltado para cá.”

Inicialmente, Gail não teve dúvida de que era a ressurreição da irmã — e se entusiasmou com o status de “criança milagrosa”.

“Minha primeira reação foi uma espécie de euforia, de orgulho, de felicidade. Tive a sensação de ter sido escolhida, me senti incrivelmente sortuda. Muito especial. E a pessoa mais importante da minha vida (a mãe) me via assim.”

Ela conta que isso criou um vínculo especial entre as duas: “Acabei com uma das coisas mais horríveis que uma pessoa pode passar… que é perder um filho. Meu nascimento levou essa dor embora por um tempo. Eu tinha outras duas irmãs, mas sabia que era a favorita, que era especial”, recorda.

Por ser uma “criança milagrosa”, Gail se sentia predestinada a fazer um bem maior pela humanidade — e chegou a pensar, inclusive, que se tornaria santa ou freira.

Mas essa convicção não durou muito tempo: “Acho que (começou a perder força) à medida que percebia que não era perfeita.”

“De alguma forma, senti que não poderia corresponder às expectativas que eu achava que seriam razoáveis para alguém que havia ressuscitado dos mortos. Tinha de haver algum propósito na minha vida. E eu não me sentia a altura disso.”

Fantasmas e assombrações

Tudo isso se tornou uma enorme fonte de ansiedade e pressão para Gail.

“Na cama à noite, eu ficava muito preocupada… enquanto outras crianças têm medo do bicho papão, de monstros debaixo da cama, de fantasmas… Eu tinha receio que a Virgem Maria aparecesse no meu quarto e me pedisse para converter a Rússia do ateísmo para o catolicismo.”

“Era início dos anos 1960 (em meio à Guerra Fria). De alguma forma, na minha cabeça, essa era provavelmente a missão número um”, relembra.

'Me sinto muito mais normal e comum agora. É um alívio enorme', diz Gail
‘Me sinto muito mais normal e comum agora. É um alívio enorme’, diz Gail

Foto: Penguin Random House / BBC News Brasil

Até que, por volta dos 12 anos, ela passou a se sentir assombrada pela irmã: “Comecei a imaginar a outra Gail como um fantasma, vivendo debaixo da minha cama. Imaginava que ela era minha irmã secreta, vivendo uma vida paralela, em uma dimensão diferente. Ela queria ficar embaixo da cama, e só eu sabia que ela estava lá.”

“Naquele momento, era óbvio que havia tido uma grande ruptura, e eu não era mais a continuação do bebê Gail.”

Ela não comentou nada com a mãe, tampouco com as outras irmãs. Na verdade, não se falava mais sobre a outra Gail na casa há algum tempo.

O assunto só veio à tona novamente quando a mãe a flagrou beijando o namorado no carro.

“Ela era muito severa, e estava parada na porta de casa esperando por mim. A primeira coisa que saiu da boca dela foi: “Nós pensamos que você ia ser freira’.”

“Foi um momento terrível, terrível. Era como se eu tivesse arruinado a minha vida e o destino que Deus me deu. Eu tinha arruinado tudo”, afirma.

“Por causa da fraqueza da carne, eu tinha tinha sacrificado tudo.”

Naquele momento, ela conta que sua relação com a mãe ficou abalada.

“Senti que ela não me amava do mesmo jeito de antes.”

Reencarnação

Gail entrou então para a universidade, onde estudou teologia e filosofia da religião.

Foi quando ela começou a analisar a Bíblia e a questionar, pela primeira vez, o “milagre” do seu próprio nascimento.

“De alguma forma, de repente me dei conta de que as histórias em que o Natal se baseia são supostamente baseadas em um tipo de mitologia. E provavelmente não são de fato reais.”

Uma constatação que foi devastadora para ela: “Porque se o nascimento milagroso de Jesus não foi realmente verdade, por que minha história haveria de ser?”

A partir daí, ela passou a ver a outra Gail de forma diferente de novo — inspirada nos filmes de terror de Hollywood da época, acreditou que havia reencarnado.

“Comecei a pensar que era a reencarnação da minha irmã. Usei isso como desculpa para mim mesma, por isso demorei tanto para tirar carteira de motorista. Porque eu era a reencarnação de uma vítima de acidente de carro.”

Mas, segundo ela, naquele momento saiu um peso enorme das suas costas.

“Senti que éramos a mesma pessoa de certa forma. Mas não de uma forma milagrosa pesada.”

E, por um tempo, Gail conseguiu viver com menos culpa — noivou, casou… Embora ainda precisasse desesperadamente da aprovação da mãe.

“Passei do sentimento de que eu ‘tinha que ser freira ou santa’, para o sentimento de que precisava me destacar academicamente. E foi isso que aconteceu. Fiquei obcecada com minhas notas na universidade e meu desempenho acadêmico.”

Mas, pela primeira vez em muito tempo desde que era criança, ela se sentiu aceita pela mãe.

“Senti que ela estava muito orgulhosa de mim”, diz.

Libertação

Até o momento em que as coisas começaram a não ir tão bem no seu casamento e na vida acadêmica.

“Eu estava sentada à mesa da cozinha, e minha mãe finalmente disse: ‘Talvez eu tenha cometido um erro ao chamar você de Gail’.”

“Sério, foi como um golpe na minha cabeça. Senti um pânico visceral quando ela falou isso. Porque tudo que eu conseguia pensar é que não tinha feito jus ao meu nome de alguma forma. Que a havia decepcionado profundamente. Foi um pesadelo. ”

Só mais tarde, Gail entendeu que não foi bem isso que a mãe quis dizer.

Ao encontrar uma anotação em uma foto da irmã morta, ela descobriu que seu nome do meio era diferente do dela – e se deu conta de que a mãe a via como um indivíduo próprio.

“Senti naquele momento que estava sendo partida ao meio. E foi uma dor incrivelmente linda. Me senti incrível. Pela primeira vez na vida, senti que minha mãe me via com uma identidade própria. E na cabeça dela, em algum momento da sua vida, pensava na outra Gail como Gail Marie.”

“Era como se fôssemos gêmeas siamesas, separadas pela primeira vez. Seríamos genuinamente duas pessoas independentes”, acrescenta.

“De repente, senti que minha mãe também me amou esse tempo todo.”

A descoberta aconteceu no dia seguinte à morte da mãe.

Mas Gail afirma que nos últimos anos de vida dela, as duas tiveram a oportunidade de se reconciliar:

“Pela primeira vez, eu disse a ela que a amava. Pela primeira vez, ela disse que me amava. O sentimento de aceitação mútua foi total. Fui com ela a todas as sessões de quimioterapia e me tornei a filha que sempre quis ser.”

Hoje, ela se vê como uma pessoa única – não mais como a ressurreição ou reencarnação da irmã. E celebra a oportunidade de, finalmente, poder ser simplesmente ela mesma.

“Eu diria que sou uma ateia supersticiosa. Minha vida continua cheia de superstições”, afirma Gail, que é autora de histórias sobrenaturais.

Mas, acima de tudo, ela descobriu a liberdade de ser uma “pessoa comum”.

“Me sinto muito mais normal e comum agora”, diz.

“É um alívio enorme. Embora, como todas as pessoas comuns por aí, eu gostaria de poder fazer algo especial de vez em quando. Mas não tem aquele sentimento de obrigação.”

Gail Gallant escreveu um livro de memórias sobre sua história chamado The Changeling (“Criança trocada”, em tradução livre).

Ouça aqui (em inglês) a íntegra do programa Outlook

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Fonte: Terra Saúde


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