Tão cedo, tão avassalador. Mas em algum momento Maradona haveria de descansar. Não deve ter sido fácil ser Maradona por 60 anos. Concentrar num só personagem toda a beleza e todas as dores, todos os sonhos e todos os fantasmas, todos os poderes e todas as fraquezas, todas as celebrações e todos os excessos, todas as alegrias e todas as melancolias, e corajosamente nunca se esconder, oferecer-se à exposição e em escala global de cada capítulo de uma vida que traduziu toda a complexidade possível da existência humana.
Maradona, o personagem, é imbatível como tal. Antes de tudo, foi um realizador de sonhos. E não apenas pela conversão de um menino pobre de Vila Fiorito, na região metropolitana de Buenos Aires, primeiro num dos maiores jogadores de futebol que o mundo já conheceu, e depois num símbolo quase religioso.
Quantas vezes já ouvimos que o futebol é o mais democrático dos esportes? Pois sempre que se dizia isso, vinha à cabeça Maradona. Pequeno, roliço, por vezes gordo mesmo, dono de um biotipo distinto do que se idealiza para um atleta de elite, capaz apenas de jogar com uma só perna, a esquerda. Pois lhe bastava. Maradona permitia a todo menino, de qualquer origem e de qualquer tamanho, sonhar.
Foi num campo esburacado e com a camisa dos Cebollitas, equipe infantil do Argentinos Juniors, que Maradona virou alvo das câmeras de TV para nunca mais se ver longe delas. Sua vida seria, toda ela, um grande espetáculo midiático.
Com sua perna esquerda, estreou na elite do futebol argentino antes dos 16 anos, mostrou-se um prodígio e, aos 20 anos, chegaria ao Boca Juniors, onde começaria a viver outra de suas facetas: nada que envolvesse Maradona teria meio termo. O amor dos torcedores, do povo argentino e, anos depois, as defesas apaixonadas e as condenações sumárias diante de seus vícios e desregramentos de uma vida multicolorida, tudo seria incondicional, cercado de emoções arrebatadoras. Maradona era a intensidade.
Com a mesma perna esquerda – e eventualmente com a ajuda da mão esquerda -, ganhou uma Copa do Mundo e virou herói nacional. Depois transformou o até então modesto Napoli em algo além de campeão nacional: um símbolo da autoestima, da afirmação do sul da Itália e, em especial, de uma cidade que se sentia discriminada. Maradona, de novo, emergia como um catalisador de esperanças, de sonhos.
Mas quantas vezes ouvimos falar das armadilhas da fama, do sucesso? Pois Maradona também as simbolizou como ninguém. Por trás de grandes gênios pode haver grandes contradições. E o mesmo Diego que sempre viveu a vida como se estivesse ao vivo muito antes das redes sociais, que sonhou e desfrutou do sucesso, sucumbiu diante do próprio êxito ao perceber que o Rei de Nápoles já não poderia dar um passo sem ser vigiado. E assim como sua magia no campo e suas distrações fora dele, viu expostas ao mundo cada uma de suas crises, descontroles e constrangimentos de um homem que se refugiava nas drogas com a mesma intensidade com a qual vivia a vida. Maradona foi o símbolo do lado B do futebol, do sucesso.
E quantas vezes discutimos o papel político do atleta? Pois para Maradona nunca houve discussão: ele era um ser político, e ponto final. Quantos ex-atletas se poderia esperar ver desembarcando num trem em Mar del Plata para tomar a frente de uma manifestação contra George Bush? Pois Maradona o fez em 2005, durante a Cúpula das Américas, onde posou ao lado de Hugo Chávez dias após entrevistar Fidel Castro, em Havana. Do líder cubano, fez até uma tatuagem, assim como fez de Che Guvera. Sempre transitou entre líderes identificados com a esquerda, o que não o impediu de frequentar campos ideológicos distintos. Se o gênio do campo se permitia seus paradoxos, a ponto de construir o maior engano – ou seria a maior trapaça? – e o maior gol da história num só jogo, por que não o faria o cidadão Diego?
Maradona sempre viveu no palco e do palco. Como jogador, foi maior quanto mais nobres e desafiadoras fossem as ocasiões, mesmo quando o corpo já lhe cobrava o preço de uma vida acidentada. Fora dos gramados, fosse para reivindicar seus feitos, expressar o amor à bola, questionar poderosos, países e até a igreja católica, o que nunca aceitou foi deixar de se expressar. É mesmo complexa a existência humana. As armadilhas da fama, o assédio sufocante, tudo isso o vitimou. Mas também o viciou, química e emocionalmente. Era como se Maradona se destruísse e se alimentasse da vida vivida ao vivo. Até sua agonia transformada em exibição pública soava como uma manifestação eloquente de quem se recusava à rendição, de quem rejeitava ter que deixar de dialogar com o mundo, a quem tantas vezes deixou de joelhos.
Para a maioria de nós, mortais, seria preciso viver muitas vidas para experimentar o que Maradona viveu em seus 60 anos. É o que o torna um personagem inatingível, inigualável. Um gênio do futebol, uma vida além do jogo.