Tão cedo, tão avassalador. Mas em algum momento Maradona haveria de descansar. Não deve ter sido fácil ser Maradona por 60 anos. Concentrar num só personagem toda a beleza e todas as dores, todos os sonhos e todos os fantasmas, todos os poderes e todas as fraquezas, todas as celebrações e todos os excessos, todas as alegrias e todas as melancolias, e corajosamente nunca se esconder, oferecer-se à exposição e em escala global de cada capítulo de uma vida que traduziu toda a complexidade possível da existência humana.
Maradona, o personagem, é imbatível como tal. Antes de tudo, foi um realizador de sonhos. E não apenas pela conversão de um menino pobre de Vila Fiorito, na região metropolitana de Buenos Aires, primeiro num dos maiores jogadores de futebol que o mundo já conheceu, e depois num símbolo quase religioso.
Pessoas se reúnem para lamentar a morte da lenda do futebol argentino Diego Maradona do lado de fora do estádio San Paolo em Nápoles, Itália Foto: CIRO DE LUCA / REUTERSTorcedores do craque argentino Diego Maradona cantam slogans em frente à entrada do estádio argentino Boca Juniors La Bombonera, onde as pessoas se reúnem para lamentar sua morte em Buenos Aires Foto: ALEJANDRO PAGNI / AFPPessoas se reúnem no topo do Quartieri Spagnoli em Nápoles em 25 de novembro de 2020 por um mural de 1990 representando a lenda do futebol argentino Diego Maradona, após o anúncio da morte de Maradona Foto: CARLO HERMANN / AFPTorcedor presta reverência a Maradona, em frente ao condomínio onde fica a casa do craque argentino, em Benavidez, na província de Buenos Aires Foto: JUAN MABROMATA / AFPPessoas se reúnem no topo do Quartieri Spagnoli em Nápoles em 25 de novembro de 2020, perto de um mural de 1990 representando a lenda do futebol argentino Diego Maradona, para lamentar o anúncio da morte de Maradona Foto: CARLO HERMANN / AFP
As pessoas acendem uma bomba de fumaça ao lado de um retrato da lenda do futebol argentino Diego Maradona, enquanto eles se reúnem no topo do Quartieri Spagnoli em Nápoles em 25 de novembro de 2020 para lamentar o anúncio da morte de Maradona. – A lenda do futebol argentino Diego Maradona morreu aos 60 anos, anunciou seu porta-voz em 25 de novembro de 2020. (Foto de Carlo Hermann / AFP) Foto: CARLO HERMANN / AFPUm homem é visto enquanto as pessoas se reúnem para lamentar a morte da lenda do futebol argentino Diego Maradona fora do estádio San Paolo em Nápoles, Itália, 25 de novembro de 2020. REUTERS / Ciro De Luca Foto: CIRO DE LUCA / REUTERSRetrato do argentino Diego Maradona é exibido em uma tela gigante antes da partida de futebol do grupo B da UEFA Champions League Borussia Moenchengladbach x Shakhtar Donetsk, em Moenchengladbach, oeste da Alemanha Foto: INA FASSBENDER / AFPOs jogadores observam um minuto de silêncio em memória da lenda do futebol argentino Diego Maradona, que faleceu em 25 de novembro de 2020, antes da partida de futebol do grupo A da Liga dos Campeões da UEFA entre o Atlético de Madrid e o Lokomotiv Moscou no estádio Wanda Metropolitano, em Madrid Foto: GABRIEL BOUYS / AFP"Maradona faleceu em 25 de novembro de 2020. Napoli está chorando, adeus ao Deus do Futebol", diz a placa no topo do Quartieri Spagnoli, em Nápoles, Itália Foto: CARLO HERMANN / AFP
Torcedores do Boca Juniors penduram a bandeira próxiomo ao estádio La Bombonera, onde as pessoas se reúnem para lamentar a morte do astro do futebol argentino Diego Maradona em Buenos Aires Foto: ALEJANDRO PAGNI / AFPSantuário é improvisado em um bar em Nápoles após o anúncio da morte da lenda do futebol argentino Diego Maradona Foto: CARLO HERMANN / AFP
Quantas vezes já ouvimos que o futebol é o mais democrático dos esportes? Pois sempre que se dizia isso, vinha à cabeça Maradona. Pequeno, roliço, por vezes gordo mesmo, dono de um biotipo distinto do que se idealiza para um atleta de elite, capaz apenas de jogar com uma só perna, a esquerda. Pois lhe bastava. Maradona permitia a todo menino, de qualquer origem e de qualquer tamanho, sonhar.
Foi num campo esburacado e com a camisa dos Cebollitas, equipe infantil do Argentinos Juniors, que Maradona virou alvo das câmeras de TV para nunca mais se ver longe delas. Sua vida seria, toda ela, um grande espetáculo midiático.
Com sua perna esquerda, estreou na elite do futebol argentino antes dos 16 anos, mostrou-se um prodígio e, aos 20 anos, chegaria ao Boca Juniors, onde começaria a viver outra de suas facetas: nada que envolvesse Maradona teria meio termo. O amor dos torcedores, do povo argentino e, anos depois, as defesas apaixonadas e as condenações sumárias diante de seus vícios e desregramentos de uma vida multicolorida, tudo seria incondicional, cercado de emoções arrebatadoras. Maradona era a intensidade.
Com a mesma perna esquerda – e eventualmente com a ajuda da mão esquerda -, ganhou uma Copa do Mundo e virou herói nacional. Depois transformou o até então modesto Napoli em algo além de campeão nacional: um símbolo da autoestima, da afirmação do sul da Itália e, em especial, de uma cidade que se sentia discriminada. Maradona, de novo, emergia como um catalisador de esperanças, de sonhos.
Mas quantas vezes ouvimos falar das armadilhas da fama, do sucesso? Pois Maradona também as simbolizou como ninguém. Por trás de grandes gênios pode haver grandes contradições. E o mesmo Diego que sempre viveu a vida como se estivesse ao vivo muito antes das redes sociais, que sonhou e desfrutou do sucesso, sucumbiu diante do próprio êxito ao perceber que o Rei de Nápoles já não poderia dar um passo sem ser vigiado. E assim como sua magia no campo e suas distrações fora dele, viu expostas ao mundo cada uma de suas crises, descontroles e constrangimentos de um homem que se refugiava nas drogas com a mesma intensidade com a qual vivia a vida. Maradona foi o símbolo do lado B do futebol, do sucesso.
E quantas vezes discutimos o papel político do atleta? Pois para Maradona nunca houve discussão: ele era um ser político, e ponto final. Quantos ex-atletas se poderia esperar ver desembarcando num trem em Mar del Plata para tomar a frente de uma manifestação contra George Bush? Pois Maradona o fez em 2005, durante a Cúpula das Américas, onde posou ao lado de Hugo Chávez dias após entrevistar Fidel Castro, em Havana. Do líder cubano, fez até uma tatuagem, assim como fez de Che Guvera. Sempre transitou entre líderes identificados com a esquerda, o que não o impediu de frequentar campos ideológicos distintos. Se o gênio do campo se permitia seus paradoxos, a ponto de construir o maior engano – ou seria a maior trapaça? – e o maior gol da história num só jogo, por que não o faria o cidadão Diego?
Maradona sempre viveu no palco e do palco. Como jogador, foi maior quanto mais nobres e desafiadoras fossem as ocasiões, mesmo quando o corpo já lhe cobrava o preço de uma vida acidentada. Fora dos gramados, fosse para reivindicar seus feitos, expressar o amor à bola, questionar poderosos, países e até a igreja católica, o que nunca aceitou foi deixar de se expressar. É mesmo complexa a existência humana. As armadilhas da fama, o assédio sufocante, tudo isso o vitimou. Mas também o viciou, química e emocionalmente. Era como se Maradona se destruísse e se alimentasse da vida vivida ao vivo. Até sua agonia transformada em exibição pública soava como uma manifestação eloquente de quem se recusava à rendição, de quem rejeitava ter que deixar de dialogar com o mundo, a quem tantas vezes deixou de joelhos.
Para a maioria de nós, mortais, seria preciso viver muitas vidas para experimentar o que Maradona viveu em seus 60 anos. É o que o torna um personagem inatingível, inigualável. Um gênio do futebol, uma vida além do jogo.
Diego Maradona ergue a taça da Copa do Mundo do México, em 1986, depois vencer a Alemanha Ocidental por 3 a 2. Foi a última vez que a Argentina ganhou o título mundial Foto: Luiz Pinto / Agência O Globo – 29/06/1986Maradona joga futebol na praia de Copacabana, Zona Sul do Rio Foto: Joaquim Nabuco / Agência O Globo – 13/07/1985Maradona tenta passar pelo volante brasileiro Falcão na derrota de 3 a 1 para o Brasil, no Estádio Sarriá, em Barcelona Foto: Erno Schneider / Agência O Globo – 02/07/1982Diego Maradona reage durante partida de futebol do Grupo D da Copa do Mundo de 2018 da Rússia entre Nigéria e Argentina, no Estádio de São Petersburgo. A seleção latina venceu o jogo por 2 a 1 Foto: OLGA MALTSEVA / AFPDiego Armando Maradona presenteia o compatriota Papa Francisco durante uma reunião com organizadores, jogadores e convidados do jogo inter-religioso "jogo pela paz", no salão Paulo VI, no Vaticano Foto: HANDOUT / AFP – 25/11/2020
Diego Maradona, idolatrado por milhões de argentinos por sua brilhante carreira no futebol ? incluise pela conq1uista do último mundial do país, no méxico, em 1986 ? não teve o mesmo sucesso como técnico da seleção Foto: Enrique MarcarianDiego Armando Maradona beija a mão do craque brasileiro Ronaldinho Gaúcho durante cerimônia de entrega de medalhas de futebol masculino das Olimpíadas de Pequim, em 2008, quando os argentinos conquisaram o ouro na vitória sobre a Nigéria de 1 a 0, gol de Ángel Di María Foto: Daniel Dal Zennaro / Arquivo – 23/08/2008Maradona participou do Jogo das Estrelas reúne, no CFZ, no Recreio, Zona Oeste do Rio Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo – 21/12/2005Maradona, acompanhado do presidente venezuelano Hugo Chávez, participou de ato contra a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e a presença do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, na IV Cúpula do Américas, em 2005 Foto: Ivan Franco / Arquivo – 04/11/05O argentino Diego Maradona recebeu outra lenda do futebol, o brasileiro Pelé, no programa semanal "La Noche del Diez" (A Noite do Número 10), transmitido pelo Canal 13, em Buenos Aires Foto: Reuters – 15/08/2005
Campeão mundial de boxe peso-pesado Mike Tyson dos EUA levanta a lenda do futebol argentino Diego Maradona durante o programa semanal de televisão de Maradona 'La noche del 10' (A Noite dos 10), em Buenos Aires Foto: Reuters – 07/11/2005Diego Armando Maradona cumprimenta seu médico Leopoldo Luque em Olivos, depois de se submeter a uma cirurgia para remover um coágulo de sangue em seu cérebro, no começo de novembro Foto: – / AFPMaradona abraça Ronaldinho Gaúcho Foto: Divulgação – 06/06/2005Carregando a Tocha do Centenário, o ex-astro do futebol argentino Diego Maradona entra no estádio do Boca Juniors como parte das comemorações do 100º aniversário do clube em Buenos Aires Foto: Marcos Brindicci / Reuters – 03/04/2005Diego Armando Maradona cumprimenta ex-presidente Lula durante encontro Brazilian President Luiz Inacio Lula da Silva, right, while Venezuelan President Hugo Chavez, center, looks on during a break of the presidential meeting at Camatagua complex in Eastern Puerto Ordaz, Venezuela, Tuesday, March 29, 2005. (AP Photo/Marcelo Garcia/Miraflores Press Office) ** EFE OUT ** Foto: Marcelo Garcia / Arquivo – 29/03/2005
Maradona é cercado por jornalista e curiosos ao desembarcar de uma viagem a Cuba, no aeropuerto de Madrid-Barajas, na Espanha Foto: Juan Carlos Hidalgo / Arquivo – 09/05/05Diego Maradona fuma um charuto durante partida de futebol do Grupo D da Copa do Mundo da Rússia 2018 entre Argentina e Islândia, no Estádio Spartak, em Moscou Foto: JUAN MABROMATA / AFP