Tetracampeã pan-americana de xadrez, Juliana Terao já competiu em eventos sem banheiro feminino. Professora e atleta profissional, Thauane de Medeiros teve vitória contestada por um adversário que alegava ter se desconcentrado porque ela era bonita. São situações que expõem como, embora a presença de mulheres ao tabuleiro tenha aumentado, ainda há discrepâncias entre gêneros, no tratamento, no número de mestres, de competidores e nas premiações.
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Tal discussão ganha fôlego agora, quando o xadrez vive crescimento em meio à pandemia da Covid-19. No streaming, partidas atingiram mais de 41 milhões de horas de visualização na Twitch e, no Google, as buscas alcançaram o nível mais alto dos últimos sete anos. Nas últimas semanas ficou ainda mais em evidência por causa de “O Gambito da Rainha?, uma das séries mais assistidas da Netflix ? gambito é o nome de uma jogada no xadrez.
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A adaptação do livro “The Queen?s Gambit? (1983) conta a história de Beth Harmon, órfã prodígio que luta contra vícios enquanto enfrenta os maiores enxadristas do mundo entre as décadas de 1950 e 1960. Apesar de desconstruir os estereótipos ao redor do jogo, a série cria um ambiente utópico ao falar da inserção da mulher na sociedade ? não eram comuns a liberdade, independência financeira e respeito que a personagem conquistou.
? Quando era criança joguei em muitos torneios onde era a única mulher, inclusive tinha que usar o banheiro masculino, o único que havia no local. Também há muitas piadinhas como as que a gente escuta em qualquer outro meio dominado por homens ? conta Juliana, de 29 anos, que também é hexacampeã brasileira.
O número entre meninos e meninas é equilibrado na categoria escolar, mas o cenário muda drasticamente quando avança ao profissional. Entre os mais de 1.700 grandes mestres no mundo, apenas 37 são mulheres. O número médio de atletas femininas em torneios é de 15%, e a diferença nos valores de premiação é discrepante.
? Falta reconhecimento, porque quando a mulher é destaque em algo não soa tão natural. Parece que foi sorte, e não que ela trabalhou duro e estudou para chegar lá ? afirma Terao.
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A filósofa Valeska Zanello explica que as diferenças físicas utilizadas para justificar as desigualdades também são usadas para reafirmar as desigualdades intelectuais.
? Na cultura ocidental, somos ligadas à natureza, à emoção, ao instinto. Enquanto os homens ficam com a racionalidade, o julgamento e a lógica. O xadrez, por ser estratégico e trabalhar com matemática, seria “essencialmente? relacionado ao mundo masculino ? diz a coordenadora do grupo “Saúde mental e gênero?, do CNPq.
Visibilidade de série
Professora e atleta profissional de xadrez, Thauane de Medeiros ficou satisfeita com a visibilidade que a série proporcionou ao esporte. Acostumada a ser minoria nas competições, ela lembra que, mesmo que a obra se passe na década de 1960, retrata bem a realidade enxadrista atual.
? Nos torneios hoje em dia é mais natural ter mulheres, mas as pessoas estranham quando falo que vivo disso. Aconteceu muito de eu ganhar de um rapaz e ele falar que não conseguiu se concentrar porque eu era bonita, como uma desculpa. Ainda hoje eles não lidam bem com uma derrota para uma mulher. Isso não melhorou nada em relação ao que a série mostra ? afirma a atleta de 26 anos, que também é mestre nacional e representante do Brasil nas Olimpíadas de Xadrez.
Thauane também acredita que, por falta de igualdade de condições, ainda é necessário a divisão por gênero nas competições. Mundialmente, as competições são divididas em duas categorias: absoluto e feminina. Na primeira, tanto mulheres como homens podem se inscrever, ou seja, sem distinção de gênero.
? Além de ter poucas na modalidade, elas ainda não tem apoio. Mulheres se destacariam mais em qualquer esporte se pudessem se dedicar 100% sem tanta cobranças para outras coisas. Eu ficaria feliz se tivesse só um torneio geral, mas ainda é preciso dividir em categorias para estimular as mulheres.
Aumento na procura
Enquanto a crise de Covid-19 interrompeu os treinamentos e paralisou o calendário dos esportes mais populares, o xadrez caminhou no sentido inverso. Juliana foi representante do Brasil em seis olimpíadas presenciais da modalidade e sua sétima participação foi diferente ? a edição 2020, que aconteceria na Rússia, foi realizado virtualmente.
Devido ao sucesso da série, o xadrez também surgiu como opção para jogadores amadores que buscam exercitar a mente durante o longo período de isolamento. De acordo com a “chess.com?, uma das principais plataformas de xadrez on-line, os brasileiros jogaram mais de 9 milhões de partidas entre os meses de março e junho, ante cerca de 5 milhões no mesmo período do ano passado. O número de novos usuários também saltou de 24 mil para, em média, 53 mil por mês apenas nesta plataforma.
O esporte milenar se adaptou à internet e tem voltado a crescer de forma avassaladora, mas, no Brasil, ainda falta visibilidade.
? O que precisamos para ter esse boom de volta aqui é ter um jogador de grande nome como foi o Mequinho na época dele. O esporte não está em decadência, falta é apoio ? disse Terao, se referindo a Henrique Mecking, melhor brasileiro da história.
A atleta destaca ainda a democracia da modalidade, que se reinventou no mundo digital:
? Ele adaptou muito bem à tecnologia, e hoje as crianças podem aprender xadrez de uma forma muito mais lúdica do que na minha época. Além disso, você pode ver idosos e crianças se enfrentando. Em qual outro esporte isso é possível?
Fonte: O Globo