Fazia tempo que o futebol do Rio não se afastava tanto da folclórica prancheta de Joel Santana ou das gírias e palavrões cheios de sotaque de Vanderlei Luxemburgo ? dois exemplos de treinadores que encarnam bem algumas facetas do que é ser carioca. Com o anúncio do técnico argentino Ramón Díaz, para o comando do Botafogo, três das quatro grandes equipes da cidade passaram a ser comandadas por estrangeiros. Tão diferentes entre si que levantam dúvidas sobre o que representa esse fenômeno.
O único ponto que parece pacífico é a motivação: o trabalho de Jorge Jesus à frente do Flamengo, em 2019, deu novo impulso à busca por treinadores do exterior, especialmente portugueses. O Vasco foi atrás de Ricardo Sá Pinto, que enfrentará amanhã o Palmeiras, do estreante Abel Ferreira, também lusitano. Não à toa que, ao desembarcar no Rio, uma das primeiras perguntas a Sá Pinto foi sobre Jesus:
? Jorge Jesus fez um trabalho extraordinário, realizou uma temporada incrível. Eu, como português, fiquei muito orgulhoso pelo que ele fez, mas os nossos objetivos são diferentes. A nossa capacidade nesta altura é diferente. Venho com grande experiência, muito positivo e muito confiante para desenvolvermos um trabalho sério e vencedor, mas tudo tem seu tempo ? afirmou à época.
Fora a tentativa de repetirem a fórmula que fez sucesso, as biografias dos contratados revela justamente a falta de um perfil ideal por parte dos dirigentes.
Não se trata da busca de um treinador vencedor: dos três, apenas Ramón Díaz tem no currículo conquistas de encher os olhos: coleciona títulos argentinos e foi campeão da Libertadores. Domènec Torrent acumula títulos, mas nenhum deles no comando já que, durante 11 anos, foi auxiliar técnico de Pep Guardiola.
Carlos Augusto Montenegro, de saída do comitê gestor do Botafogo, enumerou os motivos que fizeram o clube contratar o argentino.
? Primeiro, foi pelo currículo vitorioso dele. Segundo, por ser argentino, nosso vizinho que todo mundo sabe que tem muita garra. Terceiro, me parece que é um técnico ofensivo. Mas, foi mais o currículo, aliado ao profissionalismo e à garra argentina. E por ser um técnico considerado de primeiro mundo. Com a vinda dele, estou chegando e falando para todos: ?o que eu poderia fazer, eu fiz? ? disse.
Padrão de jogo
Montenegro reconheceu que, entre os critérios, aquele em que tinha menos convicção era justamente sobre o estilo de jogo das equipes de Díaz. Isso revela como não existe um perfil de trabalho que norteie essa procura: enquanto Torrent foi contratado na esperança de que pudesse replicar no Flamengo as ideias vanguardistas de Guardiola, Ramon Díaz é considerado um treinador tradicional da escola argentina. Sá Pinto, na tentativa de dar um rumo ao Vasco, escalou o time no 3-6-1 contra o Caracas, quarta-feira, longe de qualquer ousadia ofensiva.
Uma coisa é certa: as comparações com Jesus ocorrem, mais cedo ou mais tarde, com todos. Invariavelmente, quem mais sofre com isso é Dome. Depois da classificação para as quartas de final da Copa do Brasil, foi mais uma vez questionado sobre o trabalho do português. A resposta foi em tom de desabafo:
? O trabalho do Jorge Jesus foi excelente no Flamengo, ganhou tudo, muitos títulos, foi excelente. Mas o Dome não está aqui para competir com o Jorge, nem com outro treinador. Parece que estou competindo com o Jorge, mas não. O Dome está aqui porque o Jorge decidiu, de maneira legal, trabalhar em outro país. Por isso o Dome está aqui.
Não existe sequer um timing que paute a chegada dos estrangeiros. Se na vinda de Jesus, o Flamengo tirou proveito do período sem jogos, por causa da Copa América, os outros três desembarcaram em condições adversas, com pouco tempo para treinar e, no caso de Sá Pinto e Díaz, com o Brasileiro já pela metade.
Curiosamente, o único técnico em um grande do Rio que não foi submetido a essas condições adversas de trabalho é o catarinense Odair Hellmann, no Fluminense. No clube desde a pré-temporada e mantido no cargo mesmo depois de eliminações prematuras na Copa do Brasil e na Sul-Americana, é o que apresenta a melhor relação custo-benefício. O tricolor, apesar do elenco limitado, é o quarto no Brasileiro, a três pontos do líder Internacional, do argentino Eduardo Couldet ? Jorge Sampaoli, do Atlético-MG, completa a lista de gringos da Série A.
Fenômeno antigo
O quarteto do Rio não tinha mais estrangeiros que brasileiros no comando desde a primeira metade do século passado. Houve ao menos uma vez em que os quatro tiveram gringos na prancheta ao mesmo tempo: em 1926, o Flamengo era treinado pelo uruguaio Juan Carlos Bernote. O Fluminense, pelo inglês Charlie Williams. O Botafogo tinha o húngaro Marinetti, e o Vasco, o uruguaio Ramón Platero.
Naquela época, o futebol ainda engatinhava na então capital federal e cabia aos estrangeiros suprir a carência de técnicos domésticos de melhor nível. Quase 100 anos depois, o futebol carioca volta a usar mesmo expediente ? mesmo longe de saber direito o que quer.
Fonte: O Globo