É tremendamente difícil escrever sobre Pelé.

Mal começamos, e o leitor, com toda razão, deve ter concluído que se trata de uma confissão de absoluta incompetência do colunista. Afinal, se um cronista pretensamente especializado em futebol acha difícil preencher algumas linhas sobre o maior jogador da história, será capaz de escrever sobre quem?

Só resta transferir responsabilidade: a culpa é de Armando Nogueira. Em certa altura de sua monumental carreira, Armando disse que “Edson Arantes do Nascimento, se não tivesse nascido gente, teria nascido bola?. É tão definitivo que não há saída além da rendição: nada mais parecerá minimamente inteligente ou original.

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Mas há outros “culpados?. Pelé é daqueles seres especiais que, desde cedo, dispensaram perspectiva histórica ou estatísticas de carreira consolidada para fazer todo o público perceber que ali estava um gênio. Mas como traduzir em palavras a dimensão de sua obra depois que Nelson Rodrigues, ainda em 1959, escreveu que “Pelé poderia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los com íntima efusão: ? Como vai, colega??. Pouco resta a ser dito. Gênios inspiram gênios.

Aliás, conta-se que houve até ocasiões, por certo raras, em que Pelé jogou mal. Ou jogos em que parecia interferir, influenciar menos do que de costume. Jornadas que inspiraram Nelson a advertir que a atuação apagada do Rei era apenas uma impressão equivocada, afinal “Pelé, mesmo em casa lendo um gibi, infunde um pânico religioso?. O que dizer, então, da multidão que, indomável como só ela, certa vez cometeu o pecado de vaiar uma santidade do futebol? Somente o dom inigualável de Nelson poderia colocar as coisas em seus lugares: “Se Pelé pode ser crucificado em vaias, cessam todos os valores morais. Podemos invadir berçários para esganar criancinhas?.

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O que talvez defina os gênios é a capacidade de deixar cada espectador convicto de que está diante de um deles. Transmitir em cada exibição a sensação de que se está vivendo um momento eterno, ter a capacidade de reformar crenças. Ou, como escreveu Eduardo Galeano, “os que tivemos a sorte de vê-lo jogar, recebemos dele oferendas de rara beleza: momentos desses tão dignos de imortalidade que a gente pode acreditar que a imortalidade existe.?

A seleção de 1970

Em 1970, talvez na mais sublime reunião de talentos que o futebol já produziu, Pelé era um gênio cercado de mentes privilegiadas. Uma delas, Tostão. Mais tarde convertido em cronista, escreveu: “A perfeição não é humana; o craque Pelé é exceção?. É brilhante.

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Gênios têm a capacidade de não apenas elevar a sua arte, o seu ofício. A existência de Pelé não tornou apenas o futebol melhor. Gênios tornam melhor o mundo que os rodeia. Pelé, 80 anos hoje, deu nova graça, cor e vida à arte de escrever sobre futebol. Porque só um dom especial, uma inspiração sobrenatural ou uma genialidade de exceção permitia traduzir em palavras o futebol de um Rei. Artista que compôs obras de arte com os pés, foi também a razão de algumas das mais belas páginas da crônica esportiva brasileira. E que certa vez fizeram um aspirante a cronista, hoje impotente diante da genialidade dos mestres e da obra de Pelé, se apaixonar pelo ofício.