O botafoguense que abriu o “Jornal do Brasil? em 20 de agosto de 1963, antevéspera do primeiro jogo do time contra o Santos pela semifinal da Libertadores daquele ano, não teve como não se empolgar. “Pelé pode ser do Botafogo até dezembro?, dizia a manchete, e a reportagem tinha até uma declaração contundente de Pepe, “O Gordo?, procurador do atleta.

O gênio e a raça: posição do Rei sobre racismo reflete mudanças na sociedade

? Pelé vê a possibilidade de jogar no Rio até o fim do ano com grande simpatia e até mesmo com entusiasmo, pois sente que, pelo menos, por enquanto, estão liquidadas suas condições de continuar disputando o Campeonato Paulista, onde é injustiçado, ofendido, injuriado e vaiado a todo momento ? disse o agente ao jornal, confirmando que, com o atleta, estava tudo certo para o empréstimo de quatro meses. Só faltava o acerto entre os dois clubes.

Quem conhece um pouquinho da história do futebol sabe que o acerto nunca ocorreu. Oficialmente, Pelé, que completa 80 anos amanhã, só jogou com as camisas de Santos e Cosmos (EUA), além da seleção. Conhecido pelos seus grandes feitos, Pelé é um homem que também encantou por aquilo que quase fez, como os famosos “quase gols? na Copa de 1970, que ilustram a reportagem.  O Rei do Futebol também tem histórias pouco conhecidas que, por um triz, não aconteceram de fato. Conhecê-las é mais uma forma de homenagear e manter viva a lenda do maior jogador de futebol de todos os tempos. Afinal, quem nunca imaginou como teria sido se Pelé tivesse jogado no seu time?

Pelé tenta gol do meio de campo contra a Tchecoslováquia, em 1970 Foto: Editoria de arte
Pelé tenta gol do meio de campo contra a Tchecoslováquia, em 1970 Foto: Editoria de arte

O outro alvinegro

A história do “quase sim? de Pelé ao Botafogo é surreal se vista com olhos do presente. O Santos, tido como “time a ser batido?, havia vencido os três últimos Paulistas, além do Mundial, da Libertadores e da Taça Brasil em 1962. No início do Campeonato Paulista de 1963, Pelé ? já um ídolo nacional com duas Copas no currículo ? estava chateado pela perseguição e vaias que recebia, primeiro dos adversários, fora de casa, depois da própria torcida ? mal acostumada com as vitórias ?, quando Ademir da Guia e o Palmeiras dispararam na classificação.

O objetivo do procurador de Pelé, segundo a reportagem, era emprestá-lo para o Campeonato Carioca e fazer a torcida e o futebol paulista “sentirem saudade? do craque. A ida para o exterior também foi cogitada, mas como O GLOBO da véspera do confronto entre os times mostra, o Botafogo fez a melhor proposta, incluindo uma compensação financeira de 12 milhões de cruzeiros. O jornal também cita que o Flamengo tentaria atravessar o acerto, propondo uma troca, também por empréstimo, pelo meia Gérson, que sete anos depois conquistaria o Tri no México ao lado de Pelé.

O quase gol de Pelé contra o Uruguai, na Copa do Mundo de 1970 Foto: Editoria de arte
O quase gol de Pelé contra o Uruguai, na Copa do Mundo de 1970 Foto: Editoria de arte

Na partida no Pacaembu, o Botafogo vencia por 1 a 0, mas o Santos empatou no último minuto com um gol de Pelé. Vaiado e aplaudido na partida, o craque foi misterioso ao fim do jogo.

? Nunca tive nada contra o público. Sei que aplaudem um atleta quando ele está no auge. Quando ele começa a decair, o público abandona e esquece. O torcedor esquece fácil. Mas eu já estou preparado para o futuro e disposto ao que der e vier ? disse.

No dia seguinte, uma foto na “Folha de S. Paulo? mostrava o procurador de Pelé em reunião com a diretoria do Botafogo, o que causou desespero no Santos.

A especulação dominou o noticiário na semana entre o 1 a 1 do Pacaembu e o duelo decisivo no Maracanã. Antes da partida, jornalistas cariocas deram ao Rei uma placa de apoio contra as vaias, numa clara tentativa de seduzi-lo. Se pretendia reencontrar a felicidade no Botafogo, Pelé a achou, em campo,contra o alvinegro. Os 4 a 0 no jogo decisivo da semifinal da Libertadores contra um dos melhores times do país, com três gols marcados e atuação de gala, foram mais do que suficientes para que as pazes fossem feitas e a bonita história no time paulista seguisse.

No mesmo ano, Pelé foi artilheiro do Campeonato Paulista e bicampeão do Mundial e da Libertadores.

A quase ida ao Grêmio

Anos antes, Pelé não era vaiado, nem aplaudido: era desconhecido. Aos 16 anos, tinha só seis jogos na carreira ? e três dos 1.282 gols já marcados ? quando o Santos desembarcou no Rio Grande do Sul para uma série de amistosos em março de 1957. 

? Ocorriam alguns empréstimos de jovens para pegar experiência. Jogamos em Pelotas, em Rio Grande, e quase que eu fico no Grêmio, quase fui emprestado. Houve uma consulta por alguns jovens, e eu era um deles ? contou à “Zero Hora? em abril. Segundo ele, outro jovem, conhecido como Chinesinho, foi o escolhido para ficar.

Na excursão ao Sul, foram oito jogos e dois gols. Nos próximos três meses, Pelé balançou as redes 20 vezes e conseguiu a primeira convocação para a seleção.

Decisão de ficar em casa

Se sonhar com Pelé no seu time é um bom exercício, imaginá-lo nos dias de hoje vem junto com uma certeza: a de que ele estaria em algum clube europeu. Atleta de uma época de globalização ainda lenta, sem o abismo financeiro entre o Brasil e a Europa, Pelé não se viu livre das investidas vindas do outro lado do oceano. Internazionale (ITA), Milan (ITA) e Real Madrid (ESP) tentaram contratar o craque ? os espanhóis com mais insistência.

Pelé já declarou que esteve “a ponto? de assinar com o Real, mas não deu mais detalhes. O que se sabe é que a primeira tentativa foi em 1959, quando ele tinha apenas 19 anos, e que uma oferta milionária foi feita em 1961. Financeiramente, as sondagens eram melhores do que o salário do camisa 10 no time paulista. O brasileiro era o sonho de consumo de Santiago Bernabéu, ex-presidente que hoje dá nome ao estádio do clube.

? O desejo de ficar em casa foi maior ? disse Pelé no começo deste ano. Na época, ele afirmava que preferia seguir no Brasil para não ficar sem arroz e feijão.

? Teria sido incrível jogar no Real Madrid, mas não me arrependo de ficar e jogar minha carreira no Santos.

? Não adianta sonhar com Pelé, pois o Santos não o venderá para nenhuma parte do mundo. Isso só aconteceria se o clube brasileiro conseguisse outro jogador igual a Pelé, o que é impossível. Jogador igual a Pelé custará muito a aparecer ? disse à época Bernabéu, sem saber que um argentino, Lionel Messi, que seria comparado ao brasileiro, surgiria, décadas depois, justo no Barcelona, o maior rival.

? As pessoas que conhecem a história do futebol sabem que o Santos viajou muitas vezes para a Europa e não apenas isso. Sabem que venceu muitas vezes as grandes equipes da época. Não acredito que precisava jogar na Europa para provar alguma coisa. O futebol é muito diferente hoje. De qualquer forma, tive ofertas da Europa e preferi ficar em casa ? contou Pelé, em abril deste ano.