César Salinas, ex-presidente da Federação Boliviana de Futebol (FBF), morreu em julho, vítima da Covid-19. Desde que assumiu a entidade, em abril de 2018, até se tornar mais uma baixa da pandemia, repetia que seu projeto à frente do esporte era classificar “La Verde? para a Copa do Mundo do Qatar, em 2022. Já sem ele no comando, a Bolívia, que tradicionalmente não é dos times mais fortes no continente, será um adversário ainda mais enfraquecido hoje à noite, contra o Brasil, na Neo Química Arena, estreia das duas seleções nas eliminatórias. A última vez da Bolívia em um Mundial aconteceu em 1994, nos Estados Unidos.
Salinas se foi e desde então o esporte no país andino rachou ao meio. Duas correntes políticas disputam o poder da FBF, reproduzindo a polarização que o país viveu, no auge, em novembro de 2019, quando Evo Morales renunciou à presidência sob pressão de opositores e do Exército, encerrando uma era de 13 anos. É possível dizer que os problemas do futebol boliviano começaram aí, meses antes do vírus fatal chegar ao país.
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Foi na troca de governo que Salinas levou o primeiro baque: o plano de desenvolver o futebol da Bolívia passava pelo investimento na formação de jogadores, desde as categorias de base, e receber o Sul-Americano sub-15 ajudaria no desenvolvimento de atletas e profissionais bolivianos. Entretanto, o movimento pela saída de Morales trouxe com ele instabilidade política e social. Por falta de segurança, a competição foi transferida para o Paraguai.
Salinas ainda pediu o adiamento do torneio à Conmebol, mas não foi atendido. Mais tarde descobriu que a mudança no Palacio Quemado, sede do governo da Bolívia, afetaria outro ponto importante de sua gestão: a construção de um centro de treinamento para a seleção, defasada estruturalmente em relação aos vizinhos sul-americanos. Morales havia se comprometido a repassar recursos para a obra. Jeanine Áñez, presidente em exercício, não deu seguimento à promessa.
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Depois da morte de Salinas, abriu-se uma disputa sobre quem era o primeiro vice-presidente da entidade e, consequentemente, o responsável por assumir a presidência. Enquanto a FBF reconhece Marco Rodríguez como sucessor, Robert Blanco foi à Justiça e conseguiu amparo constitucional para herdar o posto.
O impasse encontrou eco entre os 14 clubes que formam parte do colégio eleitoral da federação. Oito deles apoiam Rodríguez, seis, Blanco. Para colocarem pressão, os blanquistas atacaram a FBF no ponto onde ela é mais sensível: a seleção. Incentivaram seus jogadores a não defenderem a equipe nacional. Três do Oriente Petrolero acataram as orientações e pediram dispensa. Ciente do boicote, o técnico César Farías não convocou para enfrentar o Brasil atletas do Bolívar e do Jorge Wilstermann, clubes que fazem oposição à Rodriguez, e abriu mão de alguns dos melhores nomes do esporte do país.
? Os jogadores que estão na seleção trabalharam cerca de 50 dias juntos e hoje são os que vão representar o país, com todo o respaldo de todos os bolivianos ? afirmou Marco Rodríguez, presidente da FBF, ao GLOBO.
A crise também tem reflexos no calendário do futebol boliviano. As competições locais foram paralisadas por causa da pandemia. A Bolívia tinha, até ontem, 137.706 casos e 8.192 mortes, com um índice de óbitos por milhões de habitantes similar ao do Brasil.
Os jogos ainda não foram retomados, e nem há previsão para que isso aconteça. Os clubes amargam prejuízos e já existe o movimento de jogadores, especialmente os estrangeiros, para rescindirem seus contratos. A Fifa ameaça intervir no futebol local. O governo boliviano ensaiou uma tentativa de mediação, mas os partidários de Rodríguez rechaçaram a ideia por considerarem o Estado favorável a Blanco.
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Por trás da disputa, existe a próxima assinatura dos direitos de transmissão dos jogos de futebol na Bolívia. A queda de braço, no fim das contas, é para ver quem terá a caneta na hora de negociar o contrato milionário que valerá de 2021 até 2024.
? É a pior crise da história do futebol boliviano ? resumiu Roberto Acosta, jornalista do site esportivo boliviano Late, que vem acompanhando o caso desde agosto.
Para completar, o técnico da seleção, César Farías, foi acusado mês passado de estar extorquindo jogadores. A denúncia foi feita pela Associação de Jogadores da Bolívia (Fabol). Ele estaria condicionando a convocação a um afastamento da associação e à assinatura de contrato de gerenciamento de carreira com determinados empresários.
A Fabol, que faz oposição à atual diretoria da FBF, prometeu levar o caso à Fifa. Farías evitou o assunto. Já Marco Rodríguez saiu em defesa do seu treinador:
? Não passam de puras especulações sem fundamento.
Fonte: O Globo