Aos 59 anos e em plena fase de reestruturação da seleção brasileira, Tite se viu duplamente surpreendido pelo desconhecido: a pandemia e a necessidade de ficar quase um ano distante dos campos de futebol. Ele conta como lidou com o medo da doença e com a ansiedade por retomar seu trabalho. Nesta segunda-feira, ele comanda treino na Granja Comary, preparando a equipe para enfrentar a Bolívia, sexta-feira, em São Paulo, e o Peru, dia 13, nas primeiras rodadas das Eliminatórias para a Copa do Mundo do Qatar. No domingo, ele convocou o goleiro Ederson para a vaga do machucado Alisson.
O senhor tem 59 anos. Sentiu medo diante da pandemia?
Sim. É uma coisa desconhecida e eu procurava nas pessoas com mais conhecimento do que eu, médicos, infectologistas, um norte. Vêm informações de diferentes locais, é difícil. O que mais senti medo foi quando no meu prédio chegou a informação de que o meu vizinho de porta tinha pegado.
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Acharia normal um jogador convocado que vive na Europa dizer ter medo de vir à América do Sul?
Difícil responder, mas seria plenamente compreensível, até na América do Sul temos realidades de países diferentes. A própria seleção se preocupou na logística de ficar o menor tempo possível nestes países. Abrimos mão de uma vantagem técnica, de treino de reconhecimento de gramado. Não há segurança total. O que podemos fazer é controlar ao máximo.
Durante a pandemia, quantas vezes mentalmente imaginou formações da seleção?
No início, nem em futebol se pensava. O medo generalizado, o pânico, o futebol era secundário. Mas a retomada foi difícil, com videoconferências, comunicação. É difícil ficar um tempo tão longo, é angustiante, pressiona. O campo te dá informações, o treino molda o jogo e o jogo confirma o treino. Observamos atletas, quanto tempo pararam, as mudanças de função que tiveram…
O quanto se perdeu das questões táticas da seleção?
É uma dúvida que carrego comigo, um desafio. No primeiro jogo, o objetivo será vencer com um bom futebol e ter uma retomada gradual. Há muita dúvida sobre esta engrenagem, sobre as relações entre jogadores. A linha defensiva e o primeiro meio-campista ficam um pouco mais de memória. Daí para a frente, termos um ajuste da engrenagem.
Clubes voltaram antes da seleção. Sente falta do dia a dia do clube?
(Faz uma pausa) Técnico da seleção tem ônus e bônus: te dá os melhores jogadores e te tira esse dia a dia. Desta vez tirou de uma forma inimaginável, você quer exercer sua atividade e não pode.
Diante disso, pretende voltar a tentar usar jogadores nas funções que têm nos clubes?
Sim, aproveitar a execução deles nos clubes, porque não tenho tempo de treino. Em tão pouco tempo não dá para ter invencionice.
Temos visto o sucesso de times que pressionam na frente e são móveis no ataque. O que o faz manter a ideia do jogo posicional na seleção?
O jogo posicional é importante principalmente quando o adversário marca muito atrás. Mas não é um jogo só posicional: parte de uma posição inicial, mas com alguns jogadores com liberdade. Depois que jogamos com a Inglaterra (0 a 0 em 2017), tive conversas sobre como furar um bloqueio de uma linha de cinco defensores e outra de três à frente. Entendi que é preciso ter dois jogadores abertos, pisando a lateral, criando espaços na linha de cinco do adversário. Os homens de dentro (meio) terão liberdade naquele espaço.
Você não vai prender o Neymar numa zona …
Perfeito. Quem faz isso com maestria é o City. O modelo do Liverpool é um pouco diferente, com os dois laterais pelo lado e os dois pontas se movendo com o Firmino.
Neymar pode partir do lado esquerdo ou do meio?
A fase ofensiva vai ser mais interior (pelo meio) com liberdade. Ele evoluiu, ampliou sua área de ação. Quando buscar o jogo aberto, mais circunstancialmente, vai fazer o movimento de dentro para fora.
A chegada do Gabriel Menino é sinal de que a lateral direita tem menos fartura?
Em termos de jogadores jovens, sim. Os que temos, já têm certa idade. Preciso ir pensando também em daqui a dois anos. Mas é também a projeção de um garoto que impressiona pelas virtudes técnicas. E encaixa no modelo, é um lateral meio-campista.
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No ?Bem, Amigos?, o senhor disse que gostaria de enfrentar a Bélgica. O jogo de 2018 ainda ronda sua cabeça?
Vira e mexe, sim. A última vez foi quando o De Bruyne disse que seu gol mais importante foi contra o Brasil e falou: “O Brasil jogou melhor do que nós?. Mas nessa época de fake news eu quis a confirmação. Falei com Fernandinho, que confirmou com ele. Mas agora é de boa, não é mais aquele pós-jogo, sob impacto da derrota. Foi um jogo top-3 da Copa. Encontrei o Scaloni (técnico da Argentina) numa palestra na Espanha. Ele falou que antes do jogo da Copa América assistiu ao Brasil x Bélgica. E disse: “Falei para os meus auxiliares: esquece! Se jogarmos como a Bélgica vamos perder.?
O senhor cataloga tudo o que foi feito na seleção, do modelo de jogo a métodos de treino. Vai disponibilizar isso?
Sim. Primeiro deixar um legado. Temos uma responsabilidade na seleção. Não é criar um modelo de futebol brasileiro, é o modelo utilizado na seleção por nós. A ideia é futuramente separar em episódios de 20 a 30 minutos, por exemplo: as saídas de bola que utilizamos, de que forma fizemos em cada marcação do adversário, as bolas paradas, os tipos de treinamento.
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A ideia é criar literatura, conteúdo de estudo?
Não vou bancar o altruísta, tem também o orgulho próprio do que realizamos. Mas também colaborar. Nos últimos 20 anos ou 30 anos tem uma defasagem de estudo dos técnicos brasileiros. Está sendo recuperada a partir de agora.
Os trabalhos são pouco catalogados aqui…
Como eu gostaria que o Zagallo escrevesse um livro, Parreira… É literatura que enriquece.
O que causou esta defasagem?
É amplo. Eu fui um autodidata. Professores de Educação Física me deram noção, ex-atletas. E também as experiências que vivi. E além disso (da cultura do autodidatismo), veio a não obrigatoriedade (das licenças). Eu já vim do Rio Grande do Sul e aluguei um quartinho para passar uma semana na Escola de Educação Física do Exército num curso com Júlio César Leal, Zagallo, Parreira… Eu treinava o Veranópolis na segunda divisão. Mas tudo ia muito da iniciativa pessoal.
Pretende fazer um livro ao sair?
Sim.
Será após a Copa?
Prefiro deixar acontecer. Ter permanecido após a derrota na Rússia é uma quebra de paradigma, ter a chance de construir um ciclo. Quero gastar todas as energias nisso. O livro deixo pro futuro.
Fonte: O Globo