Outubro de 2006. Então um técnico em formação, Pep Guardiola viajou da Espanha à Argentina para beber na fonte de Marcelo Bielsa. Em Rosário, após um churrasco na casa do anfitrião, foram 11 horas de conversa testemunhadas pelo escritor e cineasta espanhol David Trueba. Há quem garanta que o  caderno de anotações de Guardiola ficou sem espaço em dado momento. A cada tema abordado, consultas a um computador e a vídeos ilustravam um debate acalorado entre dois obsessivos pelo futebol.

Aquele encontro, há 14 aos, demarca o início de uma relação de admiração entre dois homens que, embora com visões particulares de futebol, se aproximam na coragem, na generosidade com o jogo, na busca pelo ataque. Mas que, desde então, tiveram trajetórias bem distintas. Hoje, às 13h30m (de Brasília), mestre e discípulo estarão em lados opostos do campo pela quarta vez, quando Leeds United e Manchester City se enfrentam pela quarta rodada do Campeonato Inglês. E o fazem, embora por vias tortas e inesperadas, outra vez em momentos antagônicos. O mundo espera mais 90 minutos de busca incessante pelo gol.

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Bielsa e Guardiola são dois dos mais influentes treinadores das últimas décadas. Mas representam  duas formas diferentes de influenciar. É possível fazer uma lista de técnicos que foram beber na fonte de “El Loco”, ainda que sua carreira não o tenha levado à elite dos superclubes europeus e o tenha deixado 16 anos sem um título. É possível fazer uma lista de técnicos que buscam inspiração em Guardiola após se apaixonarem pelo jogo de equipes que enfileiraram troféus. Bielsa é inspiração pelas ideias, pelos valores associados a sua visão de futebol, por um perfil único e um futebol atraente. Guardiola influencia pela transformação de suas ideias em equipes  campeãs, sedutoras, que marcaram época reunindo alguns dos grandes jogadores do planeta.

– Não me sinto mentor de Guardiola. Ele é um técnico independente em suas ideias. Seus times jogam de forma única – disse Bielsa na última quinta-feira.

Foi apenas mais uma das demonstrações de admiração em uma história que pode ser contada a partir dos encontros entre eles. Após a maratona de 11 horas em Rosário, os dois se enfrentaram pela primeira vez em  novembro de 2011. O 2 a 2 entre Barcelona e Athletic Bilbao foi dos grandes jogos da temporada.

– Foi um canto ao futebol – definiu Guardiola na ocasião.

Marcelo Bielsa grita durante jogo do Leeds United na Premier League Foto: OLI SCARFF / AFP
Marcelo Bielsa grita durante jogo do Leeds United na Premier League Foto: OLI SCARFF / AFP

 

Naquela mesma temporada, Pep definiria Bielsa como “o melhor técnico que há no planeta no momento”.

–  Pela forma como emprega suas ideias com tamanha honestidade. Não importa se ganham de 3 a 0 ou perdem de 3 a 0 seguem jogando de sua forma. O Bilbao é um presente para o público – disse Guardiola.

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Esta entrevista de Guardiola foi dada na véspera do segundo encontro, em março de 2012, vencido pelo Barcelona por 2 a 0. Mas quis o destino que, após participar da formação daquele que se tornaria o maior treinador da história do Barça, Bielsa estaria do outro lado do campo no último jogo de Pep pelo clube catalão: a final da Copa do Rei, um contundente 3 a 0 do melhor time que o Camp Nou já viu jogar.

– Eles foram generosos conosco. Após o 3 a 0 decidiram que era suficiente – reconhece Bielsa.

O jogo, no entanto, traz uma deliciosa anedota que é a cara do argentino. Obsessivo por dados a ponto de ter confessado espionar rivais na segunda divisão inglesa, Bielsa entregou a Guardiola, após aquela final, um arquivo com todas as informações colhidas sobre o Barcelona em sua preparação para o jogo.

– Foi um presente, como prova de minha admiração por ele – relata Bielsa.

– Ele sabe mais do meu time do que eu – disse Pep, cujo perfil oficial no Twitter publicou “O melhor chega à Premier League” quando o Leeds conquistou o título da segunda divisão e o acesso à elite.

Em campo, seus times se aproximam pela orientação ofensiva, pela disposição quase inegociável de construir jogadas desde a defesa, pela busca por pressionar o adversário na frente e pela tentativa de ter protagonismo no jogo, ter iniciativa. Mas, a partir daí, há sensíveis diferenças. A mais nítida, e que este Leeds ilustra bem, é a forma de defender.

Guardiola organiza times que marcam por zona, ou seja, defendendo espaços do campo. Já Bielsa é a prova de que o futebol nunca aposenta ideias tidas como antiquadas: é fiel a uma marcação em que cada defensor persegue um rival até o fim da ação ofensiva do adversário, caso seja preciso. Os encaixes individuais impõesm riscos, é claro. Um deles, o desgaste físico. Outro, contra adversários móveis no ataque, o time “perde forma”. Ou seja, seus jogadores estarão nos locais do campo para onde o rival os conduzir. Não é fácil fazê-lo sem abrir muitos espaços na defesa.
Além disso, Bielsa é adepto de um ataque mais vertical. Isto significa que busca chegar ao gol em menos passes, com mais toques para frente sempre que possível. Já Guardiola se caracteriza pela ocupação do campo adversário com uma construção de jogadas mais paciente.

Pep Guardiola orienta Bernardo Silva durante jogo do Manchester City Foto: MOLLY DARLINGTON / Pool via REUTERS
Pep Guardiola orienta Bernardo Silva durante jogo do Manchester City Foto: MOLLY DARLINGTON / Pool via REUTERS

 

Fato é que o Leeds de Bielsa é pura diversão até aqui na elite inglesa. E bom jogo. Perdeu para o Liverpool por 4 a 3 em jogo que poderia ter terminado empate. Depois venceu o Fulham pelos mesmos 4 a 3, antes de bater o Sheffield por 1 a 0.

O que ninguém esperava era que Guardiola e Bielsa se reencontrassem em momento tão antagônico. O estilo único e a boa largada na temporada fazem de Bielsa a personalidade do momento na Premier League.  Já Guardiola chega ao jogo talvez no momento de mais dúvidas e contestações em torno de seu Manchester City. Após a eliminação diante do Lyon na Liga dos Campeões, o time sofreu uma dura derrota em seu segundo jogo na Premier League: 5 a 2 para o Leicester em casa, a primeira vez que um time de Guardiola levou cinco gols.

A dificuldade para defender contragolpes e a queda na produção ofensiva, na criação de chances, fazem o time ser contestado. Assim como a política de mercado: a saída de David Silva não foi reposta, e as laterais ainda deixam a desejar após gastos elevadíssimos com defensores. Além disso, a perda de Sané não trouxe ao clube um jogador estabelecido, mas o promissor jovem Ferran Torres. Para completar, o time sofre com desfalques nesta largada de temporada. Além de casos de Covid, o elenco perdeu Aguero e Gabriel Jesus. Guardiola vem usando Sterling no centro do ataque.

Ainda assim, outro ponto une Pep e Bielsa: a expectativa de que o bom momento de um lado e a incerteza de outro não abalem suas convicções sobre futebol.